29.08.2023 Saúde Mental

Saúde mental e a invisibilidade das mulheres lésbicas

Depressão, ansiedade e isolamento social são as principais queixas das mulheres

O Dia Nacional da Visibilidade Lésbica é 29 de agosto e um dos principais desafios desta população é justamente a “possibilidade de existir”, como lembra Desiree Cordeiro – psicóloga clinica com experiencia em orientação sexual e identidade de gênero: “A grande questão que vejo em consultório tem haver com a possibilidade da existência dessas mulheres na sociedade. Atualmente, há muito conservadorismo em relação às questões de gênero e sexualidade”. 

A psicóloga afirma que a mulher lésbica é invisibilizada. “Por isso, ter esse lugar de pertencimento de que, sim, é uma possibilidade de duas mulheres ficarem juntas, é real. A saúde mental da mulher, de um modo geral, é deficitária em relação aos homens, por ter mais risco de ansiedade e depressão. Sendo uma mulher lésbica não é diferente. E o agravante é que essa invisibilidade faz com que elas sejam mais suscetíveis ao adoecimento psíquico”, ressalta. 

Depressão, ansiedade e isolamento social diante desse contexto são as principais demandas em saúde mental. “Esse olhar de vulnerabilidade, inexistência dessa mulher, faz com que o acesso à saúde seja precário, ela se arrisca menos a falar como está se sentindo. Se ela não é validada nem como ser humano, que dirá na questão da saúde mental? Então, esses estereótipo de padrão de como mulheres devem ser, que ‘falta homem e por isso se torna lésbica’, a gente vai ter critérios que vão deixar essa mulher em mais vulnerabilidade”, analisa Desiree Cordeiro. 

Para Samuel Araujo Gomes da Silva, pesquisador e professor de Demografia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o fato de algumas mulheres lésbicas não seguirem as “normas do ser feminino”, como “provedoras naturais de novos filhos”, provoca uma descredibilização delas na sociedade. “A performance de gênero tem muito haver como as pessoas se apresentam no mundo e como as pessoas entendem que aquela ‘roupa é mais masculina’, por exemplo. E, para algumas mulheres lésbicas que não tem uma performance feminina, são pressionadas a se adequarem à norma social”, explica.

Na opinião do especialista, políticas públicas para essas mulheres passam por uma questão de educação da sociedade. “Infelizmente a gente não tem visto muito investimento nisso, mas sou otimista e acredito que é possível que a gente consiga ver cada vez mais. Precisamos compreender que essas performances de gêneros são construídas, que esses papéis não definem a experiência de vida de muitas pessoas. Isso impede uma perpetuação do sofrimento dessas mulheres lésbicas”, conclui.

Lugar de fala: a visão de uma mulher lésbica sobre saúde mental

Para nos aprofundarmos ainda mais sobre o assunto, conversamos com a historiadora Eloyse Davet, que é mulher lésbica, e mestra em patrimônio cultural e sociedade. Confira:

Poderia nos contar um pouco sobre sua descoberta por gostar de pessoas do mesmo sexo e como mudou sua vida a partir de então?
Eloyse: Então, foi muito difícil assumir pra mim mesma sobre isso. Meus pais sempre foram muito praticantes do catolicismo e eu, por consequência, também. Fui coroinha, catequista e até toquei em uma banda na igreja. Cresci aprendendo que somente era correto o que estava na bíblia e, com isso, muito da minha sexualidade e identidade foi reprimida. 

No ensino médio tive meus primeiros contatos com garotas que se relacionavam com outras garotas e no início eu repeli. Tinha medo, receio até de falar com elas. Aos poucos fui vendo que toda aquela narrativa que havia me contado durante a infância não era bem assim. Com 17 anos conheci uma menina que fez meus olhos brilharem e o coração palpitar. No início eu achei que era algo particular, que era só ela, ainda mais que eu havia gostado de alguns meninos e já tinha tido um namoradinho. O tempo foi passando e eu fui me apaixonando cada vez mais por ela. Essa menina tinha todos os estereótipos da sapatão, então, quando comecei a sair com ela, meus pais ficaram desconfiados. Quando tomei coragem de ficar com ela, um dia depois do meu aniversário de 18 anos, foi como se eu tivesse realmente me encontrado. Podia ser cena de qualquer clichê de comédia romântica em que o pezinho sobe e se ouvem sininhos ao fundo. 

Depois disso que veio a culpa, a sensação de estar errada, a não aceitação dessa nova identidade que eu estava construindo e minha cabeça foi ficando bem confusa. Para os meus pais foi bem difícil. Ouvi falas do meu pai que jamais esquecerei e que, de vez em quando, ainda ecoam na minha cabeça. O preconceito dói muito mais quando vem de uma pessoa que você ama. Nossa relação nunca mais foi a mesma, segue em altos e baixos. Quando acho que ele não tem mais problemas com a minha sexualidade, ele retrocede e assim vai e lá se vão 10 anos.

Não tem como não falar de saúde mental nesse contexto, né? Você passou por questões relacionadas à ansiedade, depressão e outros?
Eloyse: Eu sempre fui uma pessoa ansiosa. Vejo hoje o quanto isso já estava presente na minha infância. Hoje eu trato minha ansiedade e princípios de depressão que estavam surgindo. Já passei por alguns casos de homofobia, mas sei que isso se dá ao meu privilégio de ser uma mulher cis branca, que frequenta o ambiente acadêmico, que tem acesso a educação e cultura e que está dentro do espectro do estereótipo do que é ser mulher, do feminino. Sei que essa não é a realidade de todas as mulheres lésbicas.

Como lidou (lida até hoje) com os julgamentos e estereótipos? E quais são as questões que mais te incomodam nesse sentido?
Eloyse: Uma das coisas que mais me irrita é a perpetuação dos padrões de heteronormatividade. É algo tão enraizado na nossa sociedade que, por vezes, já me peguei reproduzindo comportamentos ou falas das quais tenho repulsa. 

Quando se trata de mulheres lésbicas o que mais acontece é ouvir: “tá, mas quem é homem da relação?”, especialmente nos casos em que nenhuma das duas apresenta qualquer traço, comportamento ou indumentária tida como masculina. Já nos casos em que a mulher usa roupas largas, cabelos curtos, boné ou nenhuma maquiagem é tida como masculina, a sapatão. Por isso que eu gosto de me autointitular sapatão, pra mim é tornar uma palavra tida como xingamento em potência e com a qual eu me identifico. 

Outra coisa que me incomoda muito é a fetichização das relações entre duas mulheres. Ainda temos que ouvir muitas coisas desagradáveis com relação a questões sexuais e sabemos que isso se dá devido a indústria pornográfica que intensifica muito isso. Mas isso tudo é muito mais antigo, porém sempre muito velado devido a questões religiosas e sociais.

Por fim, você acredita que seriam necessárias políticas públicas para cuidar da saúde mental dessas mulheres? Se tiver alguma sugestão também, seria bem vinda.
Eloyse: Acho que é extremamente necessário para todas as pessoas cuidar da saúde mental. Pessoas LGBT precisam ainda mais, pois na maioria das vezes o principal preconceito ocorre no quarto ao lado e é muito difícil se manter forte nesses casos. 

Acredito que a comunidade médica ainda não está preparada para pensar o que é tido como diferente. Qualquer caso que fuja a heteronormatividade já desestabiliza os profissionais da saúde. Já tive que lidar com situações totalmente desconfortáveis em consultórios médicos ao dizer que não me relacionava com homens e receber em troca um profundo silêncio ou então uma enxurrada de perguntas que não tinham nenhuma relação com o tema, eram apenas curiosidade e especulação. 

A comunidade médica precisa entender que não estamos mais na década de 1980 em que a principal preocupação com a saúde de pessoas LGBT era concernente a disseminação do HIV/AIDS. É preciso acolher essas pessoas, fornecer informações de qualidade e acessíveis, propor planos de saúde integral, pensando no ser humano como um todo, não em especialidades separadas que não dialogam em conjunto. 

Acredito que as redes sociais têm um amplo alcance na população jovem, mas quando falamos de LGBTs estamos falando em pessoas de todas as idades, desde aqueles que estavam no armário na época em que o que se dizia era o GLS. Hoje, eu acredito que os que eram considerados S têm que seguir intensificando trabalhos, projetos e produção de conhecimento pensando na comunidade LGBT não só como objetos de pesquisa, mas como seres repletos de complexidades, subjetividades e memórias.

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