09.12.2019 Saúde Pública

Em Defesa da lei de cotas, contra a PL 6159-2019

Por CDD

Texto escrito por Rafael Giguer – Auditor Fiscal do Trabalho (RS)

Tem histórias e situações que nos emocionam de imediato de tão tocantes que são. Mas tem aquelas vezes em que nos emocionamos muito só que não conseguimos de pronto entender o que há nelas que tanto nos tocou.

Hoje, em uma fiscalização longe de casa, em uma sala emprestada de uma Gerência Regional do Trabalho no interior do Estado, aconteceu uma dessas histórias enigmaticamente emocionantes.

Recebi a empresa das 15h30min já desesperançoso. Na semana anterior eu havia fiscalizado uma empresa do mesmo segmento em Porto Alegre e o representante havia me perguntado se as outras empresas do ramo também estavam com a reserva de cargos preenchida. Respondi que praticamente todas que eu fiscalizava estavam sim com a cota cumprida, e lembrei tristemente que uma das pouquíssimas exceções era a empresa que fiscalizaria no interior na semana seguinte.

Essa empresa do interior já era minha conhecida e eu não via nenhuma perspectiva de melhora. As inspeções anteriores eram sempre iguais: o preposto sempre chegava desmotivado, sem contratações e sem ações para apresentar; já eu, terminava com aquela sensação de fracasso e sem expectativa de melhora. Eu já havia lavrado um Auto de Infração na inspeção anterior e já previa uma repetição da falta de ações e perspectivas.

Chegam as quinze horas e trinta minutos. O preposto senta na cadeira em minha frente naquela sala emprestada. Calculo a cota de pessoas com deficiência a ser cumprida, já naquele ritmo de desolamento. Quando faço a primeira pergunta a atmosfera da sala imediatamente se transforma, ele começa a falar e eu de imediato começo a me emocionar, ainda sem entender o porquê. Não é mais uma fala de desalento, de desesperança: é um discurso forte, convicto, apaixonado, quase furioso.

Ele me conta que foi realmente tentar implementar um programa de inclusão na empresa e pela primeira vez se deparou concretamente com as barreiras. Quanto mais tentava implementar e superar os obstáculos apresentados, mais era defrontado com as verdadeiras motivações por trás da não inclusão. Passou a ver e ouvir claramente as desculpas e discursos abertamente discriminatórios e ausentes de empatia para com o outro. Ele não precisava me dizer verbalmente o quanto isso o deixou perplexo, o indignou. Tudo estava claro na forma que ele falava, e quanto mais ele contava, mais eu me emocionava e sentia que “havíamos conseguido”. A fala era indignada e furiosa, mas não desolada ou estagnada. Tinha algo de desejo e uma força para transformar o mundo.

O preposto me conta como havia despertado para a existência do outro, da dignidade que o outro merece e de como muita gente deliberadamente ignorava esse direito. Fala das ações que conseguiu organizar com muito esforço e criatividade: em uma troca de serviços com uma instituição de ensino, promoverá curso de Libras para todos empregados da empresa. Fez questão de levar para palestrar uma surda, que contou sua experiência de quando foi internada na empresa (é um hospital). Conta como foi importante a moça sensibilizar os funcionários ao mostrar o quanto faltou no atendimento dela por não se comunicarem, nem sequer tentarem, justamente em um momento tão delicado.

Conta do Paulo (nome fictício), que em virtude de um tiro nas costas ficou paraplégico e estava há 15 anos sem trabalhar, mas em um convênio com a reabilitação do INSS começou a retomar sua vida profissional na empresa. Primeiro era acanhado até ao falar com os colegas, pois estava desacostumado com aquela situação. Fazia 15 anos que não era visto como um profissional.

O preposto, indignado, conta que mesmo em sendo um hospital percebeu que havia um degrau para acesso ao novo posto de trabalho de Paulo, mas Paulo até disse que conseguiria sozinho dar um jeito. “Ele não tem que dar um jeito” e bate com força o punho fechado na mesa enquanto fala: “É um absurdo que nossa sociedade, as pessoas, impeçam que alguém possa circular ou trabalhar. A rampa já foi providenciada”.

E eu, discretamente lacrimejando, só pensava “conseguimos”. A cota não veio completa, mas sei que é só uma questão de tempo. O preposto naquela postura que não sei dizer se é raiva, indignação, convicção, paixão ou tudo junto e misturado, me diz que “essa é uma meta institucional, mas principalmente pessoal” e que retornará com a cota completa na próxima fiscalização.

Muitas histórias de inclusão que acontecem na fiscalização me emocionam por razões mais que evidentes. Mas essa me emocionou muito sem eu entender completamente a razão. Enquanto escrevo essa história ainda não entendo plenamente o que me emocionou tanto nessa inspeção, mas acho que começo a compreender. Essa história fala que mesmo quando a esperança parece ter apagado, podemos ser surpreendidos com uma luz no fim do túnel escuro, a qual nos lembra que ainda tem como. Fala também dessa possibilidade que as pessoas tem de, ainda que tardiamente, despertar para o espírito da empatia com o outro. Esse despertar que revela com muita dor a percepção de que muitas pessoas estão tendo seus direitos mínimos negados por mera desconsideração da nossa sociedade. Mas esse despertar, junto com a indignação também traz o desejo de fazer diferente e a força para fazer a nossa parte e romper com esse mundo injusto.

Ao ver o preposto da empresa da qual eu já não esperava nada despertar com toda indignação, fúria, paixão e esperança, me senti em sintonia.

Me lembrou que não estamos sozinhos, que mais pessoas ainda podem acordar e que mesmo que a nossa esperança tenha aparentemente apagado, existe uma luz no final. Podemos, sim, iluminar o túnel inteiro.

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