Direitos das pessoas com doenças raras no Brasil é tema de congresso
Promovido pela OAB-SP, o congresso discutiu casos de judicialização para garantir tratamento, além de alternativas para democratizar o acesso à saúde entre pessoas com doenças raras
Fernanda Simoneto e Valentina Bressan, da Redação AME/CDD
No Brasil, o tratamento de uma criança ou jovem com uma doença rara não inclui apenas equipes de profissionais de saúde, hospitais e exames (muitas vezes inacessíveis). Envolve também o judiciário, que entra em cena para garantir o acesso a tratamentos caros. “Não é luxo entrar na Justiça para conseguir medicamentos, mas, sim, a única chance de vida das crianças”, disse a advogada Renata Mihe, mãe de uma criança com atrofia muscular espinhal (AME), no Congresso de Direito à Saúde para Doenças Raras, promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, no dia 3 de março. O congresso se debruçou sobre os direitos das pessoas raras, o papel da justiça e do estado na garantia constitucional de tratamento.
Como muitos dos medicamentos para doenças raras não estão disponíveis na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais do SUS, que apresenta os fármacos oferecidos em todos os níveis de atenção à saúde, o acesso ao tratamento precisa ser garantido através da Justiça.
A advogada Renata Mihe, por exemplo, garantiu o direito do seu filho de receber o Zolgensma, tratamento contra a AME que custa cerca de 6 milhões de reais, através de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) . O Zolgensma é o único remédio administrado em dose única para essa condição, e teve sua incorporação no SUS aprovada em dezembro de 2022. Entretanto, a opção ainda não chegou efetivamente aos hospitais públicos.
Em fevereiro de 2023, a droga também foi adicionada na lista de cobertura obrigatória da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – a partir da inclusão no rol da ANS, em tese, não é mais necessário recorrer à justiça para que planos de saúde ofertem a medicação.
No Brasil, são consideradas raras as doenças que atingem 65 indivíduos a cada 100 mil pessoas. Já a União Europeia adota a taxa de 1 a cada 2 mil. Em geral, as doenças raras são de origem genética. Estimativas indicam que existem de 6 a 8 mil tipos diferentes delas. Fibrose cística, munopolissacaridose, fenilcetonúria e a própria AME são alguns dos exemplos. Cerca de 80% delas surgem ainda na infância. Atualmente, 13 milhões de brasileiros possuem doenças raras.
Henderson Fürst, advogado e presidente da comissão de bioética e biodireito da OAB, comemorou a organização do Congresso, reiterando a intenção da instituição de que toda a sociedade seja educada para o exercício dos seus direitos. “O motivo de organizarmos esse congresso é não só trazermos questões jurídicas relevantes para a advocacia, mas também levarmos à sociedade educação para os direitos das doenças raras”, afirmou, na ocasião.
Judicialização dos casos
“Infelizmente, apesar do princípio da universalidade no SUS, quando falamos de doenças raras, o acesso é difícil”, afirmou Tatiana de Queiroz, advogada especialista em saúde. A Constituição Federal de 1988 garante a saúde como um direito dos cidadãos, sendo responsabilidade do estado brasileiro assegurá-la.
“Quando o judiciário é acionado, é porque as políticas públicas não estão funcionando”, arrematou Andreia Bassa, advogada pós-graduada em gestão de políticas públicas para a saúde.
A portaria 199, que entrou em vigor em 2014, determinou a criação de centros de referência no país para as doenças raras. No entanto, nove anos depois, existem apenas 18 locais que ofertam um tratamento multidisciplinar, essencial para o diagnóstico e o cuidado. O número, claro, é insuficiente para a realidade brasileira.
“O paciente precisa de um atendimento integral. Ele deve estar em um onde todos os profissionais conheçam a doença”, explicou Andreia Bassa no congresso.
Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça definiu três requisitos básicos para um paciente entrar com uma ação judicial para receber um medicamento. Primeiro, é preciso ter um laudo médico sobre a necessidade do fármaco. Nele, é preciso indicar que não há outros medicamentos disponíveis no SUS para tratar aquela doença ou aquele indivíduo.
Segundo: é necessário demonstrar a incapacidade financeira de pagar pela terapia. E, por último, o remédio solicitado deve ter aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Em 2020, o Supremo Tribunal Federal decidiu, com base nos artigos 2 e 196 da Constituição Federal, que a responsabilidade da garantia de acesso a tratamento de saúde deve ser da União, impedindo que as ações sejam movidas em âmbito municipal ou estadual. Para Tatiana de Queiroz, a decisão prejudica os doentes raros, uma vez que a justiça federal tende a ser mais vagarosa.
No caso da atrofia muscular espinhal, o uso dos tratamentos modernos nos primeiros meses de vida ajuda sobremaneira a evitar sequelas que se prolongariam para o resto da vida. “Quando falamos de crianças com doenças raras, temos que garantir a celeridade judicial”, completou Tatiana de Queiroz.
Em fevereiro de 2023, Vinícius Samsel, de três anos, morreu devido a complicações da AME um dia depois de sua família receber o valor para custear o Zolgensma, aquele medicamento caríssimo. O STF havia determinado que a União arcasse com os custos da droga em dezembro, mas a liberação do dinheiro chegou tarde demais.
“Acesso é quando a medicação está dentro de casa, na mão do doente, não é só na questão legal”, resume Fernanda Batista, fisioterapeuta e vice-diretora da Associação Amigos da Atrofia Muscular Espinhal.
Desafios da pesquisa
O Zolgensma é só um exemplo dos problemas envolvidos no acesso a medicamentos para doenças raras. O preço e a disponibilidade desse tipo de medicamento dependem de diversos fatores. Das primeiras descobertas científicas às prateleiras das farmácias, qualquer remédio passa por etapas obrigatórias para garantir a segurança do paciente, que influenciam no valor de distribuição.
Uma das fases mais complexas do desenvolvimento de tratamentos para doenças raras é a pesquisa em humanos. Isso porque a quantidade de pacientes é pequena, o que dificulta a busca por voluntários que se encaixem nos requisitos para testar uma nova droga.
“Por essa dificuldade, a lista de tratamentos mais caros é liderada pelas chamadas drogas órfãs para doenças raras”, explica o advogado Henderson Furst. O pequeno espaço amostral estimula as farmacêuticas a elevarem o preço de comercialização dos remédios destinados a essa população.
O desafio de produzir materiais científicos que sirvam de base para novos medicamentos levou Furst a investigar o financiamento das pesquisas na área. Em 2001, a lei nº10.332 definiu que determinadas taxas de tributos deveriam ser destinadas para o fomento à ciência e tecnologia, distribuídas em diferentes programas. Para o Programa de Fomento à Pesquisa em Saúde, a lei estabeleceu que fossem encaminhadas 17,5% das verbas.
Em 2013, o ex-senador Eduardo Suplicy protocolou um projeto que propunha que, desta quantia, pelo menos 30% se destinasse especificamente para a pesquisa sobre doenças raras ou negligenciadas – estas últimas são aquelas que, geralmente, atingem a população mais pobre e estão associadas a agentes infecciosos ou parasitas. A proposição foi aprovada pelo Congresso, mas vetada, em 2019, pelo então presidente Jair Bolsonaro.
Para Furst, o fomento público seria essencial para avançar o campo científico na área, já que as doenças raras não são o principal interesse do mercado. O advogado critica a justificativa dada por Bolsonaro para o veto à época: “Ele disse que essas doenças já estavam contempladas no fundo de pesquisa e que nada indicava que o fomento leva o setor privado a ter interesse em realizar essas pesquisas”.
O advogado, então, entrou com pedido na Lei de Acesso à Informação e analisou quantas pesquisas, desde 2001, haviam sido dedicadas ao estudo de tratamentos para doenças raras e negligenciadas. Dos cerca de 5 mil projetos, apenas 188 eram destinados a esse tema. Ele foi ao Congresso e incentivou o lobby com deputados e senadores, que acabaram por derrubar o veto.
Para Furst, a história demonstra a importância da atuação de advogados alinhados às causas de pessoas com doenças raras. “Isso ainda não é, infelizmente, a resposta definitiva que precisamos para socorrer quem precisa agora”, explica. “Muito embora o projeto não fosse resolver de imediato, era um direito à esperança”, concluiu, durante sua fala no congresso da OAB-SP.
Em busca da inovação social farmacêutica
Mesmo quando um tratamento para enfermidades raras é aprovado em todas as etapas clínicas, não há garantias de que a população que mais precisa vá ter acesso a ele. Depois da avaliação de eficácia e segurança da droga, começa a discussão sobre o preço, feita pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos.
Após esta etapa, chega a fase de tentar incorporar o medicamento no SUS. Além dos procedimentos na Anvisa, é preciso passar por avaliação na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).
No caso do Zolgensma, por exemplo, a Câmara definiu que o preço máximo a ser cobrado pelas farmacêuticas é de 6,4 milhões de reais. Para incorporação da droga no SUS, o teto do preço ficou em 5,7 milhões.
Para o advogado Fernando Aith, professor de Política, Gestão e Saúde da Universidade de São Paulo (USP), as metodologias utilizadas no processo de avaliação de novas drogas e de comercialização são insuficientes para suprir as necessidades de quem convive com uma doença rara e sem cura (cerca de 95% das raras sequer têm tratamento). “Um problema de saúde pública com essa natureza precisa de soluções diferenciadas de pesquisa, distribuição e acesso”, justifica Aith.
Atualmente, Aith desenvolve uma pesquisa que busca soluções para esse impasse na área da saúde. Junto de pesquisadores da França, do Canadá e da Holanda, ele mapeia iniciativas de “inovação social farmacêutica”, o termo usado nos estudos.
A ideia é encontrar novidades na área de gestão em saúde que permitam um acesso democrático a medicamentos para quem mais precisa. “São inovações que juntem, no processo, o poder público, as indústrias e os usuários, incluindo os pacientes e as associações”, explica.
As soluções podem envolver transferência de tecnologia, flexibilidade legislativa e acordos de cooperação entre governo e indústria. Um exemplo foi a Resolução 205, conjunto de regras especiais determinadas pelo colegiado da Anvisa em 2017, que estabelece procedimentos específicos para pesquisa clínica e registro de medicamentos para raros.
Depois da publicação da normativa, prazos de análise foram encurtados e passou a ser permitido que evidências científicas fossem apresentadas como complementação após o registro da droga. Também foi acordado que, no caso de fármacos importados, testes de controle de qualidade possam ser dispensados.
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