21.06.2022 Saúde Pública

Parece bom, mas não é: SUS incorpora remédio off label para degeneração macular relacionada à idade (DMRI)

Órgão do governo se vale de nova lei para liberar o uso do medicamento bevacizumabe contra essa doença oftalmológica, mesmo sem uma indicação na bula para isso.

Em maio, as secretarias de Atenção Especializada à Saúde (SAES) e de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE) baixaram uma portaria alterando o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) da degeneração macular relacionada à idade (DMRI). Isso para incluir uso off label do medicamento bevacizumabe, que é aprovado em bula no Brasil somente para o tratamento do câncer colorretal e outros tumores sólidos. A novidade parece positiva, mas traz riscos. 

“Uso off label” é aquele em que o medicamento é receitado para uma indicação não prevista em bula. É uma estratégia relativamente comum, na qual os médicos lançam mão do efeito colateral do remédio, ou mesmo de uma ação comprovada pela ciência, mas ainda não registrada pelos órgãos regulatórios.

Até então, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) não podia recomendar o uso off label de medicamentos na rede pública – a não ser que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitisse uma autorização específica para isso. 

Mas, em março de 2022, o presidente Jair Bolsonaro sancionou a lei 14.313, que muda essa regra. A lei entrou em vigor em meio à pandemia, e facilitaria a incorporação da hidroxicloroquina contra a Covid-19 no SUS, uma medida defendida por Bolsonaro. Cabe destacar que a hidroxicloroquina é indicada para malária – estudos mostram que ela é ineficaz contra o Sars-CoV-2. 

De acordo com a Lei 14.313, a Conitec agora pode recomendar, sem autorização da Anvisa, o uso off label de medicamentos. Como a Conitec é subordinada ao governo federal – ao contrário da Anvisa, que tem uma gestão independente e um corpo técnico estruturado –, é possível que medicamentos sejam incorporados para fins políticos.

E o bevacizumabe entra na história 

A DMRI é uma doença responsável pela perda da visão, e é associada ao envelhecimento. Os tratamentos vão de cirurgia a laser a medicações.

Em 2016, a Anvisa chegou a liberar o uso off label do bevacizumabe para DMRI, em caráter excepcional e temporário. Essa autorização vigorou por três anos, até que o órgão decidiu retirar o ato do ordenamento jurídico pela ausência de informações sobre segurança e eficácia, o que culminou na exclusão da tecnologia do PCDT.

No dia 23 de maio de 2022, a Conitec se valeu da nova lei e expediu uma recomendação favorável à alteração do protocolo da DMRI para inclusão do uso off label do bevacizumabe (Avastin) no SUS. 

Questionamentos

A Associação Crônicos do Dia a Dia (CDD) protocolou um recurso administrativo para questionar a portaria que alterou o PCDT da DMRI para incluir o bevacizumabe. Isso porque a medida não respeitou o passo a passo normal de um processo de incorporção. 

“O presente recurso não impugna a possibilidade de alteração do PCDT para inclusão de medicamentos off label, contudo, questiona o entendimento das áreas técnicas do Ministério, que consideram possível alterar diretamente um PCDT para nele incluir uma tecnologia off label que não passou pelo processo administrativo de análise”, diz um trecho do recurso.

Entre outras coisas, o processo adotado não contemplou uma consulta pública antes da deliberação final. E essa é uma etapa fundamental, porque oferece à sociedade a oportunidade de se manifestar sobre decisões com impacto na saúde pública. 

Embora a decisão pareça beneficiar os pacientes, uma vez que oferece uma opção terapêutica adicional, a incorporação de um medicamento off label sem espaço para uma consulta pública traz riscos. Diferentes setores da sociedade poderiam, por exemplo, sugerir outras incorporações de tratamento para DMRI. Além disso, esse processo abre margem para que outras decisões sobre PCDTs sejam tomadas sem a participação da sociedade.

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