‘Apartheid alimentar’: barreiras a alimentação saudável desempenham papel no aumento de prevalência de obesidade e diabete
Pessoas que vivem em áreas de vulnerabilidade social têm mais acesso à ultraprocessados, risco de má nutrição e doenças crônicas não transmissíveis; entenda mais sobre apartheid alimentar
O apartheid foi um regime de segregação racial implementado na África do Sul entre os anos de 1948 e 1994. A legislação separava a população por grupos raciais, separando áreas residenciais, de saúde, educação e de diversos serviços públicos.
De acordo com pesquisadores brasileiros que estudam a área da saúde aqui no País, atualmente vivemos um ‘apartheid alimentar’. Isso porque há uma flagrante desigualdade social no acesso aos produtos saudáveis, o que revela uma série de sintomas, na avaliação de Mariana Fagundes Grilo, pesquisadora do NUPENS, Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (USP): “Estamos falando de desigualdades no acesso aos alimentos como um sintoma da presença de injustiça sociais como, pobreza e racismo que levam a alocação desigual de recursos. O termo mostra que as barreiras do acesso à alimentação saudável não são pela falta de iniciativa de uma comunidade, mas por um legado contínuo de estruturas econômicas e políticas que são discriminatórias”.
Mariana foi uma das pesquisadoras do NUPENS, juntamente com o NEPA, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp, a fazer um levantamento sobre a presença dos chamados ‘pântanos alimentares’, ou seja, estabelecimentos de comercialização de alimentos ultraprocessados na cidade de Campinas, no interior paulista. Ele também associaram a característica de vulnerabilidade dos habitantes da região e se isso estaria relacionado ao consumo de comidas menos saudáveis.
O estudo também levou em consideração a presença ou não de restaurantes de comidas rápidas, feira livres e supermercados. Constatou-se que, em regiões menos vulneráveis economicamente, havia uma maior oferta de todo o tipo de alimento, mas os bairros mais pobres contavam apenas com lugares onde os ultraprocessados prevaleciam.
Segundo dados do Ministério da Saúde divulgados em 2020, o consumo de ultraprocessados aumenta em 26% o risco de obesidade, eleva o risco de sobrepeso em 23%, de síndrome metabólica (condições que aumentam o risco de doença cardíaca, acidente vascular cerebral e diabetes) em 79%, de colesterol alto em 102% doenças cardiovasculares em 29% a 34% e da mortalidade por todas as causas em 25%.
Os números são preocupantes, sobretudo se levarmos em conta que a população que mais está consumindo ultraprocessados é a que está em vulnerabilidade social e que, ao mesmo tempo, tem menos acesso à saúde.
Para entendermos os efeitos do ‘apartheid alimentar’, como ele se reproduz e de que maneira seria possível reverter essa situação, a reportagem da CDD entrevistou a pesquisadora Mariana Fagundes Grilo, do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS-USP). Confira:
O que significa o termo ‘apartheid alimentar’? Poderiam contar mais para a gente quais conclusões vocês tiveram no estudo que realizaram, e que foi divulgado em 2022, em parceria com o NEPA sobre o tema?
O termo “apartheid” refere-se à segregação racial. No caso de “apartheid alimentar”, estamos falando de desigualdades no acesso aos alimentos como um sintoma da presença de injustiça social, como pobreza e racismo, que leva a alocação desigual de recursos – o termo mostra que as barreiras do acesso à alimentação saudável não são pela falta de iniciativa de uma comunidade, mas por um legado contínuo de estruturas econômicas e políticas que são discriminatórias.
Residentes vivendo em áreas consideradas “apartheid alimentar” vivem em pântanos alimentares – localidades onde há mais estabelecimentos de venda de ultraprocessados (como salgadinhos, biscoitos recheados e refrigerantes), do que de venda de opções mais saudáveis, como alimentos in natura ou minimamente processados, e ainda lidam com todas as barreiras de vulnerabilidade econômica e social.
Na análise que fizemos em Campinas (autoria das cientistas Mariana Grilo, Caroline de Menezes e Ana Clara Duran, e que é detalhada no artigo Mapeamento de pântanos alimentares em Campinas, Brasil, encontramos que em Campinas, terceira maior cidade de São Paulo, cinco regiões são classificadas como pântanos alimentares.
Para chegar a esse dado, dividimos estabelecimentos em três tipos: restaurantes de comida rápida (onde a venda de ultraprocessados é predominante), feiras livres e orgânicas/agroecológicas (onde a venda predominante é a de alimentos in natura) e super/hipermercados (estabelecimentos de venda mista). Confirmamos e mapeamos as localizações — e esses dados foram cruzados com informações de renda média do chefe do domicílio e da proporção de pretos e pardos das Administrações Regionais (ARs) de Campinas.
Encontramos que, de maneira geral, as regiões com maior renda e menor percentual de pretos e pardos são as que mais concentram todos os tipos de estabelecimentos analisados. Além disso, das 18 ARs do município, cinco foram consideradas pântanos alimentares. Nessas regiões de pântanos, os residentes têm alta exposição a ultraprocessados e já existem evidências de que os pântanos alimentares podem desempenhar um papel relevante no aumento das prevalências de obesidade e diabete.
O senso comum tem uma ideia de que a população que vive em situação de vulnerabilidade teria mais acesso à comida saudável. Por que essa é uma crença equivocada?
Existe uma mudança radical na maneira como os alimentos estão sendo produzidos, distribuídos e anunciados em grande parte do mundo. Vemos uma disponibilidade crescente de alimentos ultraprocessados, altamente calóricos e pobres em nutrientes sendo distribuídos. Essa distribuição está atingindo diferentes tipos de estabelecimentos, inclusive os mercados locais que são muito encontrados em bairros de maior vulnerabilidade. As indústrias alimentícias têm como estratégia aumentar sua presença de forma acintosa nos países em desenvolvimento, como o Brasil.
De que maneira o baixo acesso à comida saudável proporciona índices preocupantes de obesidade nessa população?
Nas regiões de pântanos alimentares, os residentes têm alta exposição a ultraprocessados e acesso dificultado a estabelecimentos que comercializam opções mais saudáveis, como feiras livres. Existem evidências de que os pântanos alimentares podem desempenhar um papel relevante no aumento das prevalências de obesidade e diabetes. Além disso, os residentes também têm menos acesso a serviços de saúde, transporte e lazer. Dessa forma, os pântanos alimentares atuam como um fator de risco para má nutrição e doenças crônicas não transmissíveis.
Vocês encontram indícios do porquê de os alimentos ultraprocessados chegarem com mais facilidade nas periferias?
Na falta de regulação pelo Estado da produção e distribuição de ultraprocessados, em especial aquilo que é vendido para a população de baixa renda, a indústria alimentícia vai continuar estimulando as populações a consumir seus produtos. O consumo de ultraprocessados não tem apenas um motivo, desde a falta de políticas públicas de regulação como mencionado até questões amplas como carga horária de trabalho, preço, sabor, praticidade, dificuldade de escolher os produtos no mercado, marketing, entre outros. As características altamente atrativas dos ultraprocessados (publicidade, embalagens coloridas) e a dificuldade de acesso a alimentos in natura e minimamente processados, oriundos da agricultura familiar, por exemplo, em locais vulneráveis podem levar ao maior consumo de ultraprocessados.
O estímulo à agricultura familiar poderia ser parte da resolução do problema? Quais outras sugestões poderiam ser feitas para mudar esse cenário, no quesito políticas públicas?
Os resultados da pesquisa jogam luz sobre as relações entre a vulnerabilidade social e o acesso à alimentação adequada e saudável, apontando oportunidades de priorizar políticas públicas que promovam uma distribuição equitativa de alimentos in natura e minimamente processados.
A Prefeitura de Campinas, por exemplo, buscou superar o desafio dos pântanos alimentares com serviços como o “Banco de Alimentos”, que fornece cestas básicas à população, e o projeto “Viva Leite”, além de aumentar o Programa Cartão Nutrir. Apesar de serem instrumentos que têm ajudado, em termos de oferta, levar mais feiras de produtores para vender para essas famílias que não têm como se deslocar até o centro ou pagar o valor do centro seria uma sugestão.
Além disso, é importante a criação de políticas que façam com que nossas escolhas sejam mais saudáveis, como as de tributação, por exemplo, que aumentem o preço desses ultraprocessados em relação ou alimentos in natura e minimamente processados.
A Anvisa implementou agora em outubro de 2022 uma nova rotulagem nutricional de forma a colocar mensagens na frente das embalagens com avisos de ‘alto em açúcar’, ‘alto em sódio’, ‘alto em gordura saturada’. Há algumas experiências fora do Brasil, no México, nos Estados Unidos, na Inglaterra, África do Sul, que tributaram bebidas açucaradas como refrigerantes, o que contribuiu para redução do consumo. A restrição da publicidade é outro caminho, limitando, por exemplo, o uso de imagens lúdicas nas embalagens.
E o que mais gostariam que a população soubesse sobre ‘aparheid alimentar’?
As taxas de insegurança alimentar dispararam durante a pandemia do covid-19, mas mesmo antes de março de 2020, muitos brasileiros já enfrentavam desafios para ter acesso a alimentos saudáveis. O termo “apartheid alimentar” destaca corretamente como as políticas racistas moldaram áreas de vulnerabilidade social e levaram ao acesso limitado a alimentos saudáveis, mas principalmente aponta para a importância do trabalho de mudança estrutural para abordar essas causas básicas.
Um “apartheid alimentar” é mais do que a falta de estabelecimentos de comercialização de alimentos saudáveis em comunidades de baixa renda – aponta para a discriminação de comunidades negras quando se trata de oportunidades econômicas.
Chegar à raiz do problema não é uma tarefa fácil, porém já existem grupos de pesquisas e organizações trabalhando em diferentes aspectos da abordagem do “apartheid alimentar”, desde a construção de modelos de sistemas alimentares alternativos até o fornecimento de ideias para reformas políticas.