19.09.2022

Pequena amostragem, leis diversas, geografia: os obstáculos das pesquisas clínicas com doenças raras

Os desafios e oportunidades das pesquisas que buscam novos tratamentos para mais de 6 mil doenças raras já identificadas

Por Maurício Brum, da Redação AME/CDD

À primeira vista, soa como um paradoxo. Elas são doenças raras, como o nome indica, mas também relativamente comuns. Isso porque, embora cada doença afete um número reduzido de pessoas, estimativas mais recentes apontam a existência de pelo menos 6 mil condições raras. Isso faz com que, hoje, em torno de 350 milhões de pessoas em todo o mundo convivam com alguma dessas enfermidades.

E essa dispersão cria desafios quando o assunto é desenvolver tratamentos e medicamentos. Pacientes espalhados por muitos países, regulamentações diversas e um conhecimento limitado sobre a chamada “história natural” de algumas doenças raras (isto é, a forma como ela evolui e suas consequências de longo prazo) se somam para criar um cenário em que os ensaios clínicos, muitas vezes, encontram grandes obstáculos para avançar.

Nos últimos anos, vários pesquisadores vêm tentando propor soluções para o dilema, desde a revisão dos critérios para a elaboração dos estudos até a formulação de políticas internacionais unificadas em torno de doenças raras – e dos medicamentos que podem ser empregados em seu tratamento. Muitos desses remédios, aliás, são considerados “órfãos”, ou seja, carregam pouco interesse comercial devido ao número pequeno de pessoas diretamente beneficiadas. 

A dispersão geográfica como inimiga

A dificuldade começa na própria definição do que é uma doença rara. Alguns locais sequer têm uma classificação desse conceito, o que os acaba excluindo dos ensaios clínicos. 

Nos Estados Unidos, a definição é dada pelo Orphan Drug Act (Lei dos Medicamentos Órfãos), que, em 1983, estabeleceu que a noção de “rara” valeria para as condições que afetam menos de 200 mil pessoas em todo o país. 

No Brasil, os números absolutos deram lugar a uma proporção: a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, instituída em 2014, segue a recomendação da OMS, considerando como doença rara aquela com prevalência de até 65 pessoas a cada 100 mil.

Mas a dificuldade não para nas definições. Cada nação tem suas regras para a aprovação do ensaio clínico e para a liberação dos medicamentos voltados aos pacientes com doenças raras. Isso dificulta as pesquisas clínicas, que em geral necessitam de voluntários em vários países diferentes. 

Mesmo quando essa etapa é vencida, a geografia continua a ser um obstáculo: em função da própria raridade da doença, é comum que um hospital ou universidade envolvido participe do estudo com um número pequeno de pacientes. Às vezes é um único voluntário, mas que não deixa de exigir coordenação internacional e a garantia de investimentos para que ele não acabe desamparado após o final do ensaio. Ou seja, o esforço e o custo por paciente é especialmente elevado. 

Em 2018, pesquisadores de cinco países – Alemanha, Canadá, Estados Unidos, Itália e Reino Unido – propuseram uma espécie de check-list para desenhar ensaios clínicos transnacionais de forma mais sustentável. Originalmente, esse pessoal havia se unido para conduzir investigações envolvendo a distrofia muscular de Duchenne, uma doença rara que afeta sobretudo meninos (um a cada 6 mil nascidos vivos) e reduz a expectativa de vida para 25 anos, em média. 

A lista proposta considera aspectos como:

“O sistema regulatório é complexo e há evidência de que isso causa longos atrasos na preparação de ensaios clínicos”, apontam os pesquisadores. Garantir mais velocidade ao processo é fundamental: mais de 70% das doenças raras conhecidas se manifestam ainda na primeira infância e podem levar à morte precoce ou a problemas que se estendem pelo resto da vida.

Sem modelo ideal para ensaios

A maior incerteza, no entanto, costuma ser na forma de desenhar os estudos, devido ao número geralmente pequeno de participantes. Isso costuma impedir a adoção do “padrão ouro” em testes do tipo – o uso de grupos paralelos definidos de forma aleatória, em que um recebe o tratamento experimental e o outro toma um placebo para servir de controle para os resultados. O “padrão ouro” também contempla o chamado modelo duplo-cego (no qual nem participantes, nem pesquisadores sabem qual paciente recebe o medicamento e qual toma o placebo, para reduzir os vieses dos resultados). 

O problema reside não apenas na dificuldade de envolver um número estatisticamente significativo de pacientes, mas no debate ético que existe em torno de manter um grupo de controle recebendo apenas placebo em doenças que, muitas vezes, são fatais e não dão tempo de dar um “passo em falso”. 

“Modelos convencionais de pesquisa geralmente não são adequados para doenças raras, simplesmente porque deixam de ser uma opção particularmente atrativa para esses pacientes”, escreve o pesquisador Cody J. Bollerman em uma análise para a Associação de Profissionais de Pesquisa Clínica (ACRP, na sigla em inglês) dos Estados Unidos.

Uma alternativa para esses estudos é o chamado “cross-over”, em que os pacientes recebem diferentes tratamentos ao longo da pesquisa, o que permite que ninguém deixe de tomar algum medicamento enquanto os resultados são analisados. Em um comentário assinado por pesquisadores britânicos e norte-americanos e publicado pela prestigiosa revista Nature no primeiro semestre de 2022, esse é um dos modelos citados, mas também com ressalvas, por ser “apenas aplicável para doenças estáveis, com uma duração curta de tratamento”. 

Ao todo, os cientistas citam seis modelos principais para estudos com doenças raras. Cada um possui vantagens e desvantagens. 

O tipo de ensaio clínico ideal depende das características da doença avaliada, do número de participantes disponíveis e da quantidade de dados acumulados ao longo de estudos anteriores, facilitando a compreensão da “história natural” de uma determinada condição. 

Por outro lado, as agências regulatórias que avaliam a incorporação de medicações devem se atualizar para compreender a necessidade de incluírem modelos menos convencionais de estudos para situações como as das doenças raras.

Oportunidades vindas da dificuldade

Ainda há um longo caminho pela frente, mas a necessidade de adotar abordagens criativas nos estudos vêm propiciando inovações. O uso de biomarcadores, por exemplo, tem ganhado destaque como uma estratégia eficiente para prever os benefícios (ou danos) causados por tratamentos ainda em estudo. 

“Alterações em biomarcadores podem preceder os parâmetros clínicos – particularmente em doenças de progressão lenta –, então sua inclusão no desenho de ensaios reduziria o tempo para a autorização de comercialização de novas drogas”, diz o artigo na Nature.

Já para driblar a questão da geografia, cada vez mais cientistas têm sugerido métodos que dispensam a necessidade de o paciente comparecer fisicamente a uma instituição. Isso abre caminho para o desenvolvimento de avaliações precisas à distância. 

Benefícios para a sociedade dessas pesquisas

A realização dos ensaios para doenças raras propicia uma atenção mais próxima dos pacientes – e, aos médicos, a oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre condições que, em função da raridade, muitas vezes são negligenciadas durante a formação universitária. 

Foi o que constataram pesquisadores do Hospital de Clínicas de Porto Alegre após um estudo sobre doenças lisossômicas. “Um dos benefícios da realização de pesquisas clínicas no Brasil é proporcionar aos pacientes com doenças órfãs a oportunidade de acesso a terapias experimentais. Além disso, os altos padrões do protocolo de pesquisa são transferidos para a prática clínica, tornando os profissionais mais criteriosos e exigentes”, concluíram.

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