Rol taxativo da ANS: o que significa a decisão do STJ para quem tem doenças raras
A decisão de que a lista de procedimentos obrigatórios da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é taxativa pode restringir o acesso de pessoas com planos de saúde a certos tratamentos
Em junho, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a lista de procedimentos cobertos pelos planos de saúde – elaborada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) – deve ter caráter taxativo, o que causou preocupação e dúvidas. No caso de quem convive com doenças raras, a apreensão é ainda maior, porque diversos tratamentos inovadores estão de fora da lista (e sequer disponíveis no país). Vamos por partes.
O Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS é usado como referência para a cobertura dos planos e seguros no Brasil. Até então, muitos juízes entendiam que essa lista era apenas exemplificativa. Ou seja, procedimentos fora dela também poderiam ser contemplados – caso o seguro se negasse, o cliente entraria na Justiça para obter seus direitos.
Mas o entendimento da corte do STJ, por seis votos a três, foi por um rol que só pode ser mudado conforme a atualização da lista (salvo algumas exceções).
Para a professora de gestão em saúde Beatriz Cristina de Freitas, que analisou a questão da judicialização em sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o impacto imediato tende a gerar rejeições em pedidos que pressionariam ainda mais o sistema público de saúde. “Apesar de ser revisto periodicamente, o rol não consegue acompanhar a velocidade da incorporação de novas tecnologias, do desenvolvimento tecnológico e as novas terapias médicas disponíveis”, aponta.
Uma situação, aliás, agravada pela incerteza quanto às coberturas: “Para os beneficiários de planos de saúde, não há clareza quanto ao atendimento de suas necessidades por tipo de doença, pois os contratos não especificam caso a caso”.
Exceções ao rol permanecem
Advogados que atuam na área de saúde ressaltam a necessidade de cautela ao avaliar os impactos imediatos do entendimento firmado no STJ. Paulo Benevento, consultor jurídico das ONGs AME e CDD, lembra que a decisão ainda não tem caráter vinculante. Isto é, não obriga outras instâncias a seguirem o mesmo caminho, embora haja uma tendência natural de acompanhar a jurisprudência dos tribunais superiores.
Segundo o advogado, a decisão ainda contempla exceções: continua sendo possível solicitar algo fora do rol quando ficar demonstrado que não existe alternativa àquele tratamento na cobertura já prevista, situação mais comum entre doenças raras. “Isso não surgiu agora, isso já vinha acontecendo”, diz.
Para o advogado sanitarista Tiago Farina Matos, consultor em advocacy na área de saúde, um rol taxativo não seria um grande problema se o processo de incorporação de novas tecnologias fosse consideravelmente aprimorado. “Há um desalinhamento entre as sociedades médicas e o governo. Se você tiver 100 tecnologias nas diretrizes médicas e o rol citar 50, vamos ter problemas. As sociedades e o governo precisam sentar juntos para entender o que é indispensável e o que vai gerar desperdício”, defende o advogado.
Impacto futuro é maior temor
Segundo o advogado Paulo Benevento, o principal sinal de alerta vem exatamente da condição que o STJ colocou para atender exceções ao rol: se um procedimento já foi rejeitado anteriormente pela ANS em outra demanda, ele não pode mais ser considerado. “Esse é um ponto muito crítico. Você dizer que, após submeter uma vez e ser negado acabou qualquer chance de solicitar novamente, pode abrir margem a erros que não serão corrigidos”, aponta.
Muitas vezes, um tratamento pode não ser incorporado por ainda não haver evidências científicas suficientes de que ele de fato é útil para determinada doença – algo que muda com o tempo, conforme a ciência avança. “Digamos que algo tenha sido pedido no ano passado e negado porque não tinha evidência, mas hoje já tem. Do jeito que o STJ coloca, ele exclui a possibilidade de se reavaliar essa situação”, afirma Benevento.
O advogado destaca a necessidade de uma participação maior da sociedade civil, especialmente de associações de pacientes e de médicos, nos processos que levam à construção do rol. Também aponta a importância de revisão da decisão recente do STJ, já que novos processos sobre o tema que chegarem à corte poderão adquirir caráter vinculante, o que obrigaria outros tribunais a seguirem o entendimento original.
Em entrevista recente ao site da AME/CDD, Antoine Daher, presidente da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas) e da Casa Hunter, disse ver o novo entendimento em torno do rol taxativo com preocupação. Ele aponta que o risco de barrar novas terapias não se resume às doenças raras, já que muitas tecnologias inicialmente associadas a essas doenças são posteriormente utilizadas em condições que afetam uma parcela maior da população.
“Nós levamos esse assunto ao STF e vamos até o fim”, afirmou, na ocasião.