O peso da gordofobia e os impactos na sexualidade das pessoas com obesidade
No mês da Luta Antigordofobia e do Dia do Sexo, convidamos três profissionais para debater sobre a relação da sexualidade com a Obesidade
O sexo, por si só, traz diversos tabus. Quando falamos da saúde sexual e sexualidade de pessoas que convivem com a Obesidade, o assunto torna-se ainda mais complexo. Isso ocorre por que, além da dificuldade que ainda temos em falar sobre sexo aberta e respeitosamente, é necessário lidar com o preconceito e a gordofobia enraizados em nossa sociedade.
Recentemente, um discurso gordofóbico da socialite Val Marchiori direcionado à cantora Jojo Todynho circulou pelas redes sociais e trouxe à tona uma questão importante na luta antigordofobia: pessoas gordas transam e podem – e devem, sentir prazer, respeito e amor, independentemente de seu tamanho e peso. Infelizmente, o preconceito e a gordofobia ainda impõem uma série de barreiras na vida sexual das pessoas com obesidade, como explica o Nutricionista com Especialização em Comportamento Alimentar, Ativista, Coordenador do Departamento de Voz da ABESO, Conselheiro do CRN3 e Consultor de Nutrição e Gordofobia da CDD, Erick Cuzziol:
“Somos ensinados a odiar nossos corpos e vê-los como repulsivos, pois, caso contrário, acredita-se que nos acomodaremos e não tomaremos medidas para ‘salvar nossa vida da obesidade’. Mesmo que alguém não sinta essa repulsa ou veja beleza em um corpo gordo, enfrenta uma vigilância social, inclusive por parte de familiares, que a repreendem por sentir atração ou se relacionar com pessoas gordas.”
Erick Cuzziol
Thalita Cesário, Sexóloga e Terapeuta Sexual, destaca que uma das barreiras enfrentadas está relacionada ao estigma de que pessoas gordas não fazem sexo, não experimentam prazer e são incapazes de vivenciar relações sexuais “completas” devido ao seu peso. Ela aponta que muitos pacientes trazem inseguranças em relação ao excesso de pele e ao possível surgimento de odores entre as dobras.
Além disso, há a preocupação com a performance sexual, frequentemente idealizada por padrões estéticos e representações em filmes pornográficos que não refletem a realidade das experiências sexuais. Entre os homens, a insegurança em relação ao tamanho do pênis também é uma preocupação frequente. Todas essas questões, associadas ao preconceito que enfrentam diariamente, podem impactar significativamente a autoestima e a qualidade da vida sexual dessas pessoas.
Gordofobia e Sexualidade: Diferenças de Gênero
No contexto da gordofobia e sexualidade, é fundamental reconhecer as diferenças de gênero que moldam as experiências das pessoas que convivem com a obesidade. Segundo Erick Cuzziol, a gordofobia afeta as mulheres de forma desproporcional em comparação com os homens, com um impacto cerca de 70% maior. Ele também ressalta que, embora as mulheres tenham feito avanços notáveis na desconstrução dos padrões de beleza, ainda existe uma notável pressão sobre elas para corresponder a esses padrões.
Cuzziol também observa que a dinâmica muda quando se trata de homens gays, em que a pressão para atender aos padrões de beleza é intensa: “Surgiram até mesmo subgrupos específicos que, infelizmente, também enfrentam a gordofobia, como é o caso dos ‘ursos’ – homens gordos e peludos. Mas, é importante ressaltar que, no geral, as mulheres enfrentam uma pressão muito maior.”
“Homens gays sentem essa pressão devido ao ambiente em que estão inseridos, enquanto pessoas trans enfrentam múltiplas formas de preconceito, incluindo a pressão para atender a padrões semelhantes aos das mulheres cis, mas com níveis de violência ainda mais elevados”, explica Erick.
O impacto da Gordofobia na Saúde Mental e Sexual
O impacto da gordofobia na saúde mental e sexual das pessoas com obesidade é uma realidade complexa e desafiadora. De acordo com Erick Cuzziol, a discriminação baseada no tamanho do corpo desencadeia uma série de consequências adversas, incluindo depressão, ansiedade e distúrbios de imagem. Segundo suas observações, essa discriminação impõe a ideia de que existir em um corpo considerado “fora do padrão” é proibido, levando a uma urgência de mudança. Isso afeta não apenas a forma como as pessoas são vistas em termos de atração sexual, mas também em suas relações de amizade. A pressão para enxergar o próprio corpo como repulsivo impede a exploração do desejo e do prazer, tornando a vivência da sexualidade um desafio.
Além disso, Thalita Cesário afirma que todas as pessoas enfrentam algum grau de impacto da distorção da imagem corporal e da comparação, mas para aquelas com obesidade, a pressão social e os estereótipos de corpos perfeitos são ainda mais intensos, especialmente no contexto da sexualidade.
“A preocupação com a imagem pode evoluir para disfunções sexuais, uma vez que ao se colocarem em hipervigilância e como espectadores de si, a conexão com o corpo, o sexo e o prazer não acontece e o que era para ser memória de uma atividade satisfatória, passa a ser relacionada a uma experiência negativa”, explica Cesário.
Autoaceitação Corporal e Sua Influência na Vida Sexual
A autoaceitação corporal desempenha um papel fundamental na vida sexual das pessoas, promove confiança, reduz inseguranças e permite uma exploração mais plena do prazer e da intimidade. A relação entre autoaceitação corporal e vida sexual é um aspecto importante a ser explorado para promover experiências sexuais mais positivas, independentemente do peso ou tamanho.
“É extremamente importante que uma pessoa se compreenda e aceite seu próprio corpo para ter uma vida sexual satisfatória. Vai além de simplesmente sentir prazer; envolve tocar sua própria pele, acariciar seu corpo com carinho. Isso é um primeiro passo para perceber quando algo está bem ou não”, enfatiza o fundador do perfil ‘Nutricionista Gordo’ no Instagram e consultor da CDD.
Ele também observa que, muitas vezes, pessoas gordas enfrentam desafios em suas experiências sexuais, com encontros frequentemente marcados pela fetichização. Isso pode, em alguns casos, levar a práticas sexuais agressivas e até mesmo violentas, como o uso do ato de comer como forma de excitação, o que nem sempre está alinhado com o desejo de afeto e carinho.
“Se associamos constantemente nosso corpo a dor, desconforto, falta – de sentar, de roupa que sirva, de sapato confortável, desprazer e aperto, como saberemos quando ele precisa de ajuda? “, questiona Cuzziol.
“Precisamos aprender a sentir prazer, pois isso é essencial para identificar o que está indo bem e o que precisa de atenção”, afirma Erick.
Mitos sobre a Capacidade Sexual de Pessoas Gordas
É fundamental desmistificar alguns mitos comuns sobre a capacidade sexual das pessoas com obesidade. Thalita Cesário destaca que esses mitos incluem a crença de que elas não conseguem “dar conta”, não são desejantes ou desejáveis, não são consideradas sexy o bastante e só poderão desfrutar do prazer sexual quando emagrecerem. Além disso, existe o mito de que não merecem sentir prazer.
No entanto, Thalita ressalta a importância de entender que a sexualidade é uma parte intrínseca de cada pessoa, independentemente do corpo e da imagem que possuem: “Reconhecer que a sexualidade é um direito universal é o primeiro passo para ressignificar esses mitos”, conclui a sexóloga.
Para falar mais sobre a relação entre a gordofobia e a sexualidade, entrevistamos Jéssica Balbino, jornalista, colunista do Estado de Minas e do blog Puta Peita, escritora, roteirista, podcaster, professora e curadora de eventos literários, confira.
Quais são os principais estereótipos e preconceitos associados às pessoas gordas quando se trata de sua vida sexual?
Jéssica: É ter uma vida sexual. Normalmente, pessoas gordas são privadas de afeto e seus corpos são fetichizados, logo, o interesse só surge por relações casuais e em que estes corpos estejam subjugados, quase como se fosse uma necessidade puni-los por despertar desejo. Há muitos relatos de pessoas gordas, sobretudo mulheres, que são submetidas às relações sexuais violentas, às práticas de sadomasoquismo, etc.
Há muita rejeição quando se tratam dos corpos gordos, logo, eu diria que não é difícil encontrar sexo, mas sexo de qualidade, sexo com respeito, com afeto, sim. Quase sempre, é um sexo punitivo porque aquele corpo despertou desejo em outrem. Quase sempre é sexo constrangedor, marcado por dor, pelo prazer unilateral, onde só o outro goza e o corpo gordo é marcado para servir prazer. Ano passado escrevi um texto que ilustra muito o que os corpos gordos passam no sexo. Tudo isso faz com que as pessoas não queiram mais transar, se isolem, tenham medo de se relacionar, etc.
Como a gordofobia afeta a autoestima e a confiança das pessoas gordas em relação à sua sexualidade?
Jéssica: Afeta das formas mais negativas possíveis. Pessoas gordas ouvem, veem e sentem que são inadequadas o tempo todo. Paralelo a isso, nunca são escolhidas, são sempre preteridas nas relações afetivas e sexuais. Isso desencarreta um pensamento de que seu corpo não é aceitável e que, consequentemente, não têm valor. Há ainda uma questão que é a desumanização deste corpo, uma bestialização que faz com que nunca sejamos amados. O sexo, como eu disse anteriormente, quase sempre é punitivo. Querem agredir nosso corpo por ele ter despertado o desejo de outrem. Isso faz com que a sexualidade seja reprimida. Muitas pessoas gordas nunca experimentaram uma vida social. Outras, só experimentaram práticas abusivas e sem envolvimento afetivo. A autoestima da pessoa gorda é sempre um abismo. Difícil de ser enxergado, de ser visto, mas frequentemente experimentado.
De que maneira a mídia e a cultura popular perpetuam estereótipos prejudiciais sobre a sexualidade das pessoas gordas?
Jéssica: Há uma crença fortíssima, fortalecida pela ciência, inclusive, de que corpos gordos não seriam saudáveis em hipótese alguma e, essa máxima, somada ao preconceito da gordofobia, faz com que sejamos oprimidos o tempo todo. Entende-se que um corpo gordo é doente e que é preciso constrangê-lo o máximo possível para que ele se envergonhe de existir e/ou emagreça, ou passe a obedecer aos padrões vigentes. Caso contrário, a pessoa que ousar desobedecer e for feliz/ok vivendo num corpo gordo “merece” ser punida.
Há uma crença popular, bastante enaltecida pela mídia, de que somente corpos que se esforçam merecem ser felizes. É a meritocracia corporal. Se uma pessoa acorda 4h da manhã para malhar, ela entende que “merece” ser mais feliz do que uma que acorda às 8h e é gorda. Se uma pessoa deixa de comer um brigadeiro numa festa porque quer vestir um biquíni na praia e vê uma pessoa gorda feliz, num maiô, automaticamente ela sente-se obrigada a atacar aquela pessoa gorda, afinal, ela estaria “usurpando” o lugar de felicidade de alguém que se esforça por isso, entende?
Esse estereótipo de que somente pessoas magras merecem afeto, somente pessoas magras são disciplinadas, focadas, saudáveis, faz com que pessoas gordas se envergonhem de serem quem são e, automaticamente, que se sintam mal por mostrar o próprio corpo – até porque, quase nunca, se veem representadas. Ninguém fala sobre a sexualidade da pessoa gorda, logo, há muito tabu em torno disso. As pessoas que eventualmente transam com pessoas gordas, enaltecem isso como se fosse um favor, uma caridade, uma boa ação e, por isso, a pessoa gorda deve ser sexualmente submissa, afinal, ela está fazendo aquele “sacrifício” de transar com ela. Isso abre brechas para diferentes formas de abuso e enfraquecimento da autoestima da pessoa gorda.
Na mídia, na arte, no entretenimento, só vemos corpos gordos representados enquanto alívio cômico, enquanto a melhor amiga da protagonista, que é gorda demais pra ser amada ou, no melhor dos casos, como a gorda infeliz que está de dieta e precisa emagrecer. Nunca vemos uma representação de uma mulher comum, com uma profissão comum, que é transante, que é sexualmente livre, que é desejada. Isso torna o imaginário sobre os corpos gordos praticamente inexistentes.
O que você acredita que seja o futuro da conversa sobre sexualidade e gordofobia? Quais são os passos necessários para promover uma mudança positiva?
Jéssica: Penso que falar abertamente sobre isso é um excelente caminho. No Dia do Sexo, publiquei um texto sobre o tema e sempre que posso, tento abordar isso nas minhas redes e colunas. É importante que outras pessoas gordas falem sobre isso. Que tenhamos lugares seguros, como grupos, amigos, etc. Pra debater com mais intimidade, mas que também possamos dizer para o mundo como nos sentimentos e, sobretudo, que sacamos o mecanismo perverso de muita gente diante dos corpos gordos, de só sair escondido, de querer ver a pessoa sofrer durante o sexo, do sexo punitivo, etc.
Sempre acho que a palavra é um jeito de curar muita coisa, então, discutir isso pode ser o melhor caminho. E, pra além disso, existir. Ocupar com o corpo gordo. Dizer que transa, como gosta de transar, como prefere, etc.
Além disso, Jéssica Balbino enfatiza que é essencial convocar as pessoas magras para participarem ativamente das conversas sobre a gordofobia. Elas devem reconhecer sua responsabilidade na opressão, abandonar a indiferença em relação ao tema e iniciar um diálogo sério e comprometido com as pessoas gordas. Para Jéssica, enquanto a gordofobia for vista apenas como uma questão de interesse restrito, nosso progresso ficará limitado.
Estratégias de Enfrentamento e Acolhimento
Para enfrentar os desafios relacionados à gordofobia e à sexualidade, existem algumas estratégias e recursos. Terapia sexual e psicoterapia são duas ferramentas fundamentais, como apontado por Thalita: “A terapia sexual e psicoterapia são dois excelentes aliados e juntos ajudam a pessoa a desenvolver sua autoestima, rever seu conjunto de crenças e como consequência ajudam a pessoa a se entender no mundo e sua expressão de sexualidade. A terapia sexual ajuda nas queixas ou disfunções sexuais, bem como na psicoeducação sexual de modo a ajudar a pessoa a ter mais qualidade de vida e literalmente mais prazer sexual e na vida.”
Além disso, Erick oferece um conselho valioso para aquelas pessoas que enfrentam a gordofobia em sua vida sexual: “Não é fácil e dói, e muitas vezes parece que destrói a gente. Em muitos momentos, a solidão nos faz perceber que talvez o único amor que temos seja o nosso próprio. E está tudo bem? Não, não está bem, mas também não se enfraqueça mais. Busque sentir prazer, mesmo que seja de forma solitária, como um guia para os caminhos que valem a pena trilhar, que valem a pena percorrer. Aprenda a tocar sua pele com gentileza, a praticar a autocompaixão, e descubra quais pontos do seu corpo você gosta de ser tocado. Assim, o seu corpo sempre poderá lhe dizer: ‘Ei, aqui não está bom, eu preciso de ajuda’. Quando você conhece a sensação do prazer, do saudável, do gentil, você pode dar a atenção adequada que seu corpo merece.”
Além dessas estratégias individuais, Jéssica destaca a importância das iniciativas de pessoas que estão trabalhando para tornar o mundo mais acolhedor: “Vejo algumas pessoas remando contra a corrente para fazer um lugar no mundo mais acolhedor. Mas, são pessoas físicas que lutam por isso.” Ela menciona uma série de perfis e projetos, como Flávia Durante e o evento Pop Plus, Gabi Menezes e o perfil Saúde Sem Gordofobia, Ellen Valias do perfil Atleta de Peso, Erick Cuzziol do perfil Nutricionista Gordo, Paola Altheia do perfil @naosouexposicao, Malu Jimenez e Agnes Cardoso do Pesquisa Gorda, Rayane Souza e seu trabalho em direitos das pessoas gordas com o perfil Gorda na Lei. Todas essas iniciativas desempenham um papel importante em criar um ambiente mais inclusivo e acolhedor para pessoas gordas em diversos aspectos da vida, incluindo a sexualidade.
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