Quando é hora de recorrer aos cuidados paliativos?
Quando é hora de recorrer aos cuidados paliativos?
Aliviar o sofrimento é a grande missão dos cuidados paliativos, que é cada vez mais debatido entre profissionais de saúde e pessoas com doenças graves e sem cura
Por Bettina Gehm, da Redação AME/CDD
A jornalista e escritora Ana Michelle Soares, mais conhecida nas redes sociais como AnaMi, morreu em janeiro deste ano após oito anos em cuidados paliativos. Ela havia sido diagnosticada com um câncer de mama em 2011, aos 28 anos, e, em 2015, descobriu uma metástase no fígado. Sem possibilidade de cura, AnaMi decidiu investir em qualidade de vida. “Fui atrás de terapia, suporte espiritual e resolvi questões que me causavam sofrimento”, disse, em entrevista ao UOL.
AnaMi não quis guardar para si o que aprendeu nesse processo. Coordenou a Casa Paliativa, uma comunidade presencial e online para pacientes em condição similar a ela na época, escreveu dois livros e compartilhou suas angústias e alegrias nas redes sociais. O perfil de AnaMi no Instagram, hoje uma página memorial, tem mais de 200 mil seguidores. Após cumprir vários itens da sua lista de “coisas para fazer antes de morrer”, ela deixou um legado de ativismo em prol dos cuidados paliativos, um tipo de tratamento cada vez mais bem aceito entre médicos, familiares e pacientes.
O tratamento paliativo é feito por equipes multidisciplinares, que cuidam de pessoas com doenças graves e potencialmente sem cura. O intuito é aliviar o sofrimento e promover qualidade de vida – o que inclusive pode ocorrer em paralelo ao tratamento da condição em si.
É verdade que os cuidados paliativos estão presentes e são muito importantes nos últimos dias de vida, mas a equipe responsável por esse cuidado pode – e, em geral, deve – entrar em ação muito antes disso. O ideal é haver esse acompanhamento junto à equipe de tratamento curativo durante a evolução da doença.
“Pela nossa cultura, muitos tem a impressão de que os cuidados paliativos significam uma desistência. Na verdade, a equipe de saúde pede ajuda de uma equipe paliativa para cuidar em conjunto”, explica a geriatra Ana Beatriz Galhardi, membro da Comissão Permanente de Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). O tema vai ser debatido no XXIII Congresso de Geriatria e Gerontologia, que ocorrerá em São Paulo, entre os dias 23 e 25 de março de 2023.
O câncer é frequentemente a primeira doença que vem à mente quando se pensa nesse tipo de tratamento, mas pessoas com uma série de outras condições se beneficiam muito dos cuidados paliativos. Demências como o Alzheimer, condições crônicas mais graves (como estágios avançados da doença pulmonar obstrutiva crônica, a DPOC) e transplantes estão entre eles.
A constatação de que um indivíduo precisa de cuidados paliativos passa também pela tarefa de avaliar os prejuízos com a continuidade de um tratamento que visa a remissão ou a cura em situações onde ambas esses desfechos são muito difíceis de atingir. Para verificar isso, os médicos lançam mão de instrumentos como o questionário NEC PAL (a sigla vem de Necessidades Paliativas), criado na Espanha e já validado no Brasil.
A primeira pergunta do NEC PAL, destinada ao profissional da saúde, é “Você ficaria surpreso se este paciente morresse ao longo do próximo ano?. Se a resposta for ‘não’, está cumprido o primeiro critério de elegibilidade para continuar o questionário. A partir daí, começam as perguntas sobre condições de saúde específicas e aspectos psicossociais.
Morte sem tabu
Em outubro de 2018, o Ministério da Saúde publicou uma resolução que determina a necessidade da presença de equipes paliativas nas Redes de Atenção à Saúde. Segundo Galhardi, diversas iniciativas governamentais fomentam o ensino dessa especialidade aos profissionais da saúde.
Mas existe um obstáculo cultural na hora de tomar a decisão pelos cuidados paliativos: muitas culturas ocidentais interpretam a ausência de cura como um castigo, um fracasso.
Os benefícios de ser acompanhado por uma equipe paliativa, no entanto, mostram o contrário. Um estudo, publicado em 2010 no prestigiado New England Journal of Medicine, comparou dois grupos de pacientes recém-diagnosticados com câncer de pulmão: um recebeu cuidados paliativos integrados aos oncológicos; o outro grupo, apenas o tratamento contra a enfermidade.
Resultado: a turma que recebeu os cuidados paliativos teve uma melhor qualidade de vida e menos sintomas depressivos. E, veja só, a sobrevida média também foi maior no primeiro grupo.
Decisão compartilhada
A comunicação – entre médicos, familiares e paciente – é crucial para o início dos cuidados paliativos. Saber explicar aos familiares a gravidade do quadro e introduzir a relevância dos cuidados paliativos sem que isso soe como uma desistência ajuda na adesão.
E um recado: o paciente não deve ser o último a receber o diagnóstico de uma condição grave, até porque ele percebe que não está bem. “O acompanhamento é menos abrupto e menos parecido com um tribunal. Numa doença grave, o ideal é que haja acompanhamento da equipe paliativa desde o início”, afirma.
É importante refletir e conversar com familiares e amigos próximos sobre quais alternativas mais fazem sentido em caso de uma doença sem chances de cura. Isso, aliás, deveria ser debatido entre mesmo antes de elas se depararem com uma situação dessas.
“Se você não tiver possibilidade de reversão da gravidade da doença, vai escolher ficar entubado numa UTI? Quem estiver ao seu redor deveria saber de suas opções para representá-lo”, exemplifica a médica. Hoje em dia, há documentos que podem ser escritos para definir como você gostaria de ser tratado em certos contextos – converse com seu médico.
AnaMi foi exemplo dessa confiança nos cuidados paliativos e ajudou a levar conhecimento sobre os cuidados paliativos. Em entrevista ao O Globo, publicada em agosto de 2021, a ativista disse que não tinha medo de morrer. “Se eu temer algo que sei que vai acontecer, vou viver aprisionada. Eu tenho a segurança de que vou ser bem cuidada, acho que é com isso que as pessoas deveriam se preocupar.”
–