Benefícios e riscos de medicamentos off-label no Brasil
A indicação de remédios off label para além das orientações da bula é sugerida em casos específicos, mas a decisão médica deve ser embasada em evidências científicas e informada a quem está sendo atendido
Por Valentina Bressan e Fernanda Simoneto, da Redação AME/CDD
A prescrição de um medicamento para uma indicação que não está na bula, conhecida como uso off-label, é mais corriqueira do que se imagina. “Minha experiência de balcão de farmácia mostra que esse tipo de uso é muito comum, principalmente em especialidades como endocrinologia, ginecologia e psiquiatria”, relata o farmacêutico Wellington Barros, consultor do Conselho Federal de Farmácia.
A indicação fora do rótulo não tem a ver apenas com a recomendação para tratar uma enfermidade diferente das que constam no registro ou em doses distintas das indicadas. O uso por vias diferentes das usuais e para faixas etárias em que o medicamento ainda não foi testado também se enquadram nesta classificação. “Até a frequência de uso e a dose podem ser incluídas fora do rótulo”, explica Barros.
Isso sem contar as indicações off-label para o tratamento de doenças raras. Na maioria dos casos, não há participantes suficientes para a realização de testes clínicos para patologias com prevalência baixa na população – por isso, a indicação para estes casos também recai nesta categoria.
Uma das justificativas para o uso do off-label é a disponibilidade de fármacos no mercado: em localidades de difícil acesso, médicos precisam fazer “malabarismos terapêuticos” para solucionar a ausência das opções ideais. Mas mesmo em regiões com amplo acesso a opções de tratamento, há prevalência dos usos alternativos de remédios, observa o especialista.
Prós e contras
A recomendação diferente da indicada na bula não é ilegal e tem sua utilidade, mas enfrenta críticas e é alvo de debates acalorados. O problema principal ficou exposto na pandemia de Covid-19. Sem regulamentações claras, as divisas entre o que se trata de uso justificável e a prescrição de medicamentos que não funcionam para esse caso – como os do chamado “kit covid” – se confundem. O código de ética médica autoriza a prescrição, mas deixa claro a necessidade de haver evidências científicas, o que não havia no caso da cloroquina e da ivermectina, parte do “kit covid”.
“O off-label está relacionado com a concepção de até onde vai a autonomia do prescritor na definição do tratamento. Mas essa autonomia, para alguns, significa inclusive definir o que é evidência de benefício e a evidência de risco”, pontua Barros.
De acordo com a Anvisa, que regulamenta a aprovação de remédios no Brasil, “o uso off-label de um medicamento é feito por conta e risco do médico que o prescreve, e pode eventualmente vir a caracterizar um erro médico. Mas em grande parte das vezes trata-se de uso essencialmente correto, apenas ainda não aprovado”.
Até chegar às farmácias, uma droga passa por uma série de testes (em laboratório, animais e humanos). Concluídas essas etapas, a fabricante deve protocolar um pedido de registro na Anvisa.
Conforme se realizam mais testes e pesquisas, mesmo após o lançamento, é possível descobrir novos benefícios que não foram originalmente previstos no registro. Nesses casos, é preciso atualizar essas informações junto ao órgão regulador. Mas nem sempre isso é o que acontece, seja por falta de interesse do fabricante ou pela demora dos registros.
Um dos casos mais famosos é do Viagra, formulado para tratar doenças pulmonares, mas que se tornou mundialmente conhecido para disfunção erétil, que exigiu uma atualização do registro.
Em alguns hospitais e serviços de saúde, há protocolos para avaliar a prescrição de medicamentos fora da indicação do registro. A prática, porém, ainda não é regulamentada, à exceção da aplicação em testes clínicos.
Em todo o caso, o indivíduo deve ser informado. “A bioética clínica recomenda que a pessoa seja informada porque, quando ele entra no consultório, acredita que o profissional está prescrevendo algo que faz efeito e é seguro”, explica Barros.
Em março de 2022, foi sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro a lei 14.313, que permite ao Sistema Único de Saúde receitar medicamentos off-label. A medida, feita para acelerar a aprovação de novos registros, tem sido alvo de críticas e debates sobre sua inconstitucionalidade. “A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) não teria como incorporar sem ferir os princípios do SUS. O SUS precisa garantir a assistência farmacêutica geral, o que significa garantir acesso a medicamentos de qualidade, segurança e benefício comprovado. O off-label ainda não atingiu esses critérios”, opina o farmacêutico.
A prescrição de qualquer medicamento, esclarece Barros, deve obedecer dois princípios da bioética clínica: primeiro, não causar dano; segundo, o princípio da beneficência. “No caso de medicamentos regulares, tenho certeza da segurança e do benefício. No off-label, posso até ter dúvidas quanto ao benefício, mas é preciso ter certeza da segurança”, ressalta.
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