A mudança como um processo de autocuidado
Olá, há quanto tempo não nos encontramos por aqui, não é mesmo? Gostaria inicialmente de pedir desculpas pela ausência nos últimos meses e dizer que os dias nem sempre têm sido fáceis, mas provavelmente é recíproco não é mesmo? Em meio a uma pandemia estar bem é um ato de resistência e que precisa ser praticado diariamente. Mas como é possível se cuidar física e mentalmente quando já estamos exaustas e exaustos sentindo que a realidade só piora e já se foi um ano de incertezas?
Bom, como não posso falar em nome de ninguém além do meu, gostaria de compartilhar com vocês um pouco do que venho refletido desde o fim do ano passado. De novembro de 2020 até agora passei por inúmeros processos de mudança, de todos os tipos de mudança mesmo: finalização de mestrado, mudança de casa, mudanças no meu corpo, mudança de cidade, mudança de hábitos alimentares e de atividades físicas, adaptações no novo trabalho e algumas mudanças internas. Usualmente, eu sou uma pessoa que gosta de tudo o que é novo, do desconhecido e de desafios. Contudo, na maioria das vezes as coisas não saem como planejado e por vários momentos me vi desesperada e sem ter muito para onde correr. E isso é assustador e irritante.
Aos poucos, fui buscando olhar para o novo panorama que ia se desenhando a minha frente e buscando dar uma de Pollyana e ver o lado bom das coisas. Assim, as mudanças foram se tornando, uma de cada vez, oportunidades de me rever e buscar fazer diferente. Percebi que estava irritada com as mudanças por estar acostumada e acomodada com rotinas, lugares e pessoas. Mudar, exige que a gente saia do nosso conforto e se arrisque. E arriscar pode, por vezes, trazer com toda a força o medo de fracassar.
Refletindo sobre cada mudança busquei, e sigo buscando, analisar o que está dentro do meu controle e o que pode ter influências de forças externas. Isso se aplicou às minhas reflexões sobre a oportunidade de mudar de casa e de cidade. Sair do lugar em que eu nasci e morei por quase toda a minha vida até o momento foi uma decisão fácil, muito mais do que eu pensei que seria. As pessoas me perguntam: “tá, mas você não sente falta de lá?” e eu respondo instantaneamente: “não, quase nenhuma”. E isso é uma realidade, eu vi que estar naquela cidade me deixava estressada e eu vivia em um nível frenético e que eu estava adoecendo aos poucos, dentro de casa, e estava permitindo isso. Esse adoecimento era um cansaço constante, irritabilidade sem causas específicas, esgotamento físico e mental, desânimo e parecia que nada mais me animava. Com isso eu deixei de me ver como uma pessoa e passei a me perceber como mais um produto inserido numa lógica de trabalho e produtividade, sentindo que estava sempre em débito com tudo e todos. Era como se eu nunca me sentisse suficiente. Aos poucos, fui percebendo mudanças no meu corpo e por mais que eu sempre milite pelo fato de que somos muito mais do que somente corpo, eu me deixei afetar por essas mudanças. Vi meu autocuidado se esvaindo a cada nova marca que aparecia e só internalizava que eu não estava sendo suficiente para dar conta de me cuidar e seguir com as outras tarefas.
Em meio a tudo isso, estava finalizando minha dissertação de mestrado que justamente era sobre o tema cuidado e percebia a hipocrisia do dito: “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Esse processo de término para mim é sempre algo difícil, como se fosse um luto. Finalizar o mestrado foi difícil, mas foi ainda mais complexo abrir mão de expectativas e sonhos que eu havia construído desde que ingressei no universo acadêmico. Eu desejava ser professora universitária, reconhecida no campo das pesquisas (auto)biográficas, ter um bom salário e poder viajar o mundo. Ao passo em que fui vendo todos esses sonhos ruírem, eu também ruí. E é isso que a gente faz, é essa autossabotagem de que se as coisas mudam um milímetro do que planejamos nos irritamos e é como se tudo desaparecesse. Fazendo uma autoanálise, relembro dos tantos textos de Bauman que li e reflito sobre ser nascida em tempos líquidos, em que tudo precisa ser instantâneo e que a minha geração foi basicamente criada a partir de muito mais sim do que não. Uma geração pautada na compensação de pais que buscaram dar muito mais do que receberam. Uma geração de excessos que se frustra quando não consegue o que quer. E em meio a essas reflexões revendo meus desejos vejo que eu poderia ter insistido na carreira acadêmica e que talvez isso um dia aconteça, mas que nesse momento eu optei pela minha sanidade mental.
Estabelecendo um comparativo entre a cidade em que morava e o ambiente acadêmico que vivenciei, percebo muitas semelhanças. O trabalho acadêmico não se diferencia muito de uma linha de produção. Existem metas e métricas que te dizem o mínimo de artigos a serem produzidos no ano para ter bons resultados, renovar uma bolsa ou ser reconhecido dentro do seu campo de estudos. Tem momentos em que é muito mais sobre fazer do que refletir e somente quando você consegue se afastar desse ciclo é que percebe o quanto a lógica fabril aparece. Por vezes, me sentia elenco de “Tempos Modernos”, estrelando ao lado de Chaplin. Artigos, apresentações em eventos científicos e projetos de pesquisa eram seriados e planejados sistematicamente numa linha de produção e com prazos de entrega. Prazos estes, que me fizeram refletir o quanto valia a pena entrar nessa lógica. Por vezes, me sentia engolida pela lógica capitalista que a universidade pode criar, em que quem mais produz, mais é visto, em que as hierarquias existem e são reforçadas a cada novo artigo que você não pode publicar em determinadas revistas pois é “somente uma mestranda”.
Voltando às oportunidades, ao mesmo tempo em que estava organizando minha mudança, encaixotando memórias e me desfazendo das coisas com as quais não me identificava mais, recebi uma proposta de trabalho incrível. Eu era bolsista no mestrado e passei dois anos me dedicando exclusivamente a minha pesquisa. Logo, quando estava próximo de defender a minha dissertação eu estava sem nenhuma perspectiva de trabalho e prestes a ter mais um diploma na mão. Eis que apareceu uma oportunidade de transformar todos os dados que obtive na pesquisa em vidas, de ver artigos se transformando em diálogos acessíveis e estabelecer diálogos diretos com quem eu gostaria de falar. A cada novo dado de pesquisa eu sentia a necessidade de dar uma devolutiva para cuidadoras e cuidadores, que só estavam contemplados em meus textos acadêmicos e que muitas vezes eles não fariam sentido para essas pessoas. Preocupava-me com o modo como eu poderia promover esses diálogos e dizer que eu me importo com cada história de vida dessas pessoas eram coisas que eu desejava. Assim, poder unir esses desejos a uma oportunidade de trabalho foi algo que me fez ressignificar o conceito de trabalho que eu tinha até então. Aquele conceito pautado na lógica da produção, da presença, do espaço físico e do “bater ponto”.
Organizando todos esses pensamentos e acontecimentos, vejo o quanto diariamente precisamos nos reinventar e seguir. Por vezes, em meio a caminhos estreitos, mas que possivelmente podem nos levar a lugares que jamais seriam alcançáveis se não tivéssemos nos arriscado. É sobre aproveitar oportunidades que aparecem e pensar o que elas podem nos proporcionar. Desde mudanças pequenas como o hábito de tirar 30 minutos do seu dia para uma meditação, como se propor mudanças maiores que podem abalar toda a sua estrutura, assim como eu estou agora. Contudo, independente do tamanho da mudança e da oportunidade, não deixe de se ver no centro de tudo isso. Aproveite o tempo de cada momento, experiencie o luto por ver uma fase terminar e escolha sempre você em primeiro lugar. Não permita que uma mudança de rotina, trabalho, casa, cidade te afaste de você mesma(o). O autocuidado é um aprendizado e prática diária e requer muita vontade. Por isso, se eu puder dar algum conselho sobre o que venho aprendendo em meio a todas essas mudanças, eu diria que não deixe para depois o autocuidado que você pode ter hoje e reflita sempre sobre o que essa mudança pode te trazer.