14.10.2022 Outras Patologias

Como conversar com crianças sobre doenças crônicas dos adultos?

Conversar com crianças sobre assuntos delicados e complexos, para os adultos, parece um ‘bicho de sete cabeças’, né? Mas o universo infantil, embora às vezes repleto de fantasias, é mais simples do que a gente pensa.

O sogro de Cátia Siqueira, a Tuka, teve diagnóstico de Alzheimer quando as filhas dela tinham 7 e 8 anos. “No início, nem perceberam diferença, pois achavam ser normal, coisa da idade. Mas teve um dia que ele não as reconheceu e ficou mandando-as embora, correndo atrás delas bem bravo”, lembra. Os adultos da casa mantinham conversas sobre o assunto na presença das meninas: “Uma vez, a tia Vera, irmã do pai, deu umas explicações para elas para que ajudassem a cuidar do vovô. Eu contava algumas lembranças da minha convivência com a minha avó, que também teve Alzheimer”, afirma.

Pouco antes de o avô morrer, as netas se despediram dele ainda no hospital. “Não levamos de novo porque dissemos claramente que não queríamos que elas lembrassem dele entubado ou coisa parecida e que elas já tinham dado adeus. Houve sofrimento sim, mas já estavam preparadas. Participaram de tudo ativamente e foi um momento muito bonito de união familiar. O último que tivemos por que dias depois iniciava a pandemia”, relata.

Tuka tem diagnóstico de esclerose múltipla e conta como foi para ela e os cinco filhos conversarem sobre a doença crônica: “A mais velha das meninas tinha 9 anos na época (ela tem outro filho que, então, tinha quase 18) e lembra da apreensão com minha internação. Ninguém sabia o que era ainda”. Ela conta que a filha nunca quis saber muito porque tinha receio. Tuka chegou a dar à ela o livro ‘Benjamin – minha mãe é especial’, de Stefanie Lazai, mas nunca quis ler.

“Já as três pequenas dizem que, por nascerem depois do diagnóstico, sempre foi normal para elas. Lembram de, em certo momento, perguntarem se eu iria morrer de esclerose múltipla e, diante da minha negativa, ficaram tranquilas. As respostas foram sendo dadas com o tempo, de acordo com o interesse e capacidade de entendimento delas”, ressalta Tuka.

Tuka e sua família

Conviver com pessoas que têm doenças crônicas, para o pequeno Chico, inclui: doenças cardíacas (a vó fez cirurgia há um ano), esclerose múltipla (pai e mãe), esquizofrenia (tia), DPOC (a bisavó que faleceu no início do ano e o bisavô, que mora com ele), diabetes (tio avô muito próximo). “E, na escola, ele tem amigos com diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro do Autismo), que não é uma doença, mas uma diferença funcional significativa. Acho muito bonito ver a sensibilidade que ele tem com cada uma dessas pessoas e com as diferenças de cuidado que cada um precisa. No auge dos seus cinco anos e meio de vida, ele já consegue entender as limitações e potencialidades de cada um, individualmente”, afirma a mãe do garotinho.

Bruna Rocha conta que Chico também convive com a tia que tem esquizofrenia e deficiência intelectual: “Ele sabe que é uma mulher adulta e pode fazer inúmeras coisas de forma autônoma, tanto que ele pede ajuda dela para algumas tarefas, mas também sabe que algumas tomadas de decisão dela precisam da ajuda da minha mãe. Isso tudo só é possível porque nunca escondemos nada dele, nem tentamos, como algumas pessoas dizem “proteger” ele de uma dura realidade. Até porque não é uma realidade dura, é simplesmente a realidade de vida dele”, enfatiza.

O pai de Chico, o Jota, também tem esclerose múltipla, assim como Bruna: “Como o Jota é cadeirante, acho que desde que nasceu o Chico convive com essa questão da diferença funcional e física. Com dois anos ele já falava bem e um dia nos perguntou porque o papai usava cadeira de rodas. Até porque a cadeira pra ele é um parque de diversões”, diz.

Os pais do garotinho, então, recorreram à explicação lúdica do contexto familiar: “Explicamos para ele, com um livro ilustrado de anatomia, que a capinha da medula do papai e da mamãe está estragada. Temos um vídeo dele, com dois aninhos, falando que os neurônios do papai são estragados. Também tem a questão de que até pouco tempo atrás, eu, Bruna, usava medicação injetável, então, ele acompanha a rotina de remédios e exames desde sempre e nós explicamos tudo que ele pergunta e contamos abertamente tudo que acontece. Em 2019 o Jota passou muito tempo hospitalizado, então a rotina de saúde e doença é algo muito presente na vida dele, e é muito natural também”.

Bruna, Jota e Chico

Se tivesse que dar uma dica aos leitores, Bruna sugere: “Acho que as pessoas subestimam muito a capacidade que crianças e adolescentes têm de lidar com questões de doenças. Nós, adultos, fomos mal educados para conviver com elas e acreditamos que ignorar ou não falar sobre vai ser mais fácil, quando, na verdade, compartilhar e falar ajuda muito mais. Quanto mais corriqueira, cotidiana for a conversa sobre doenças, mais leve é a convivência. Nós tememos aquilo que desconhecemos. É por isso que criança tem medo do escuro. Se dermos luz ao tema das doenças, o medo vai embora junto”.

Para Tuka, a sinceridade é fundamental: “Aqui foi um processo gradual e de acordo com a curiosidade das crianças e da sua capacidade de entendimento. Mas também não é produtivo despejar um monte de informação que talvez nem vai ser absorvida. Crianças são naturalmente curiosas e vão perguntar, por isso é importante que não haja tabus, que não seja um assunto proibido, o resto é natural”, conclui.

Saiba mais sobre como conversar com crianças a respeito de doenças crônicas dos adultos

Para pegar mais dicas sobre como explicar para os pequeninos a respeito das doenças crônicas que podem ser diagnosticadas em cuidadores como pai, mãe ou outros integrantes da família, nós entrevistamos a neuropsicóloga Alessandra Molina Fabricio, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental para crianças e adolescentes. Confira:

Como conversar com crianças sobre o diagnóstico de doenças crônicas dos pais ou cuidadores?

Conversar com a criança sobre temas difíceis pode parecer muito complicado porque nós adultos temos a dimensão do tamanho do problema e do impacto que isso tem de forma mais ampla. A criança tem camadas de compreensão. Dependendo da idade ou mesmo da maturidade da criança, o que ela vai compreender do que estamos falando é sempre muito diferente. Falar a verdade de forma simples costuma ser o melhor caminho. Se ela quiser fazer perguntas sobre o que acabamos de dizer, ela define o quanto quer se aprofundar no assunto.

A verdade de modo simples pode ser:

“A mamãe tem uma doença que não tem um remédio que faz sarar, mas tem remédios que a ajudam a se sentir melhor na maior parte do tempo!”

“O papai tem uma doença que de tempos em tempos deixa ele se sentindo mal, mas depois que toma um remedinho, em algum tempo ele volta a se sentir melhor, nesse tempo que ele não está muito bem, nós podemos ajudá-lo com algumas coisas.”

Algumas dessas doenças crônicas têm essas características, por terem crises ou surtos, períodos nos quais as pessoas se sentem muito mal com algum sintoma, mas que melhoram depois de um medicamento, ou tratamento. Para a criança, essa perspectiva é importante, pois ela compreende que terão períodos mais difíceis, mas que tem começo e fim, e que tem coisas que podemos fazer para ajudar. Também podemos falar um pouco sobre os sintomas, dependendo do tipo de crise e da doença. Como no caso da asma: “As pessoas podem ter dificuldade para respirar ou ficar muito cansada durante a crise, às vezes precisa ir até para o hospital, mas depois do tratamento começa a melhorar e acaba voltando ao normal”.

Ou, no caso da Esclerose Múltipla, você pode explicar os sintomas: “Que têm dificuldades que podem aparecer, como não conseguir andar direito, ter dificuldade de equilíbrio, que podem durar um tempo e depois melhorar, ou alguns desses sintomas que aparecem e podem demorar muito para melhorar, mas que estamos cuidando do melhor jeito que existe”.

Se a criança perguntar sobre a duração ou até possibilidade de ‘cura’ de uma doença crônica, como agir?

Não precisamos prometer uma cura ou uma melhora rápida e improvável, mas podemos sempre assegurar para a criança que estamos cuidando disso do melhor jeito possível naquele momento. As crianças menores costumam ficar satisfeitas com essas explicações, porque é o que elas assistem e sentem no seu cotidiano mais presente. As perguntas sobre como seria isso no futuro, o que acontece depois, surgem quando as crianças começam a entender que podemos pensar sobre o futuro, o que pode aparecer mais tarde, mais comumente após os 5 anos.

Podemos sempre responder com a verdade, de acordo com a pergunta feita:

“Essa doença pode fazer a mamãe morrer?”. E dizemos: “Não sabemos como essa doença vai evoluir mais para frente mas, neste momento, não tem esse risco e estamos cuidando do melhor jeito possível”. É uma maneira de responder com a verdade, sem que ela seja só assustadora.

E no caso de um avô ou avó com Alzheimer ou outras demências, como explicar sobre as mudanças de comportamento?

Nesses casos, de doenças que afetam o cérebro, nas idades mais avançadas e que podem demorar muitos anos, sempre piorando com o passar do tempo, a orientação é mais ou menos a mesma sobre responder com informações verdadeiras. Podemos explicar que, quando as pessoas ficam velhinhas, o cérebro também fica e que tem algumas doenças que podem aparecer que geram algumas dificuldades, como por exemplo as dificuldades de memória.

“O vovô pode não conseguir mais guardar na cabeça coisas que acabaram de acontecer, ou pode começar a esquecer coisas que já tinha aprendido. O que podemos fazer para ajudar é continuar tratando ele com muito carinho, porque ele é capaz de sentir o nosso amor sempre.”

Sobre outras alterações de comportamento que podem surgir, como inadequações ou mesmo agressividade, podemos explicar que o vovô não faria isso se não tivesse essa doença, que precisamos lembrar das coisas boas que ele fazia antes, mas que nesse momento, a doença que afeta o cérebro faz com que ele faça ou diga coisas que ele não não costumava fazer.

Sobre a proximidade e causas de morte nesses quadros, podemos explicar que as pessoas quando estão velhinhas estão mais perto do fim da vida, e que muitas doenças podem aparecer, mas que não temos como saber qual doença ou quando vai acontecer. Mas podemos nos concentrar em cuidar das pessoas que amamos até o finzinho do melhor jeito possível.

Isso porque, assim como quando a criança cai e se machuca, em geral a gente não evita a dor que vem do machucado, mas a gente se sente melhor se alguém nos ajuda a cuidar do machucado.

Com as pessoas adultas e suas doenças também funciona assim: a doença pode ser chata, cheia de sintomas desagradáveis, mas se pudermos cuidar de alguns sintomas e mostrar nosso amor, a pessoa adulta também vai se sentir melhor.

Esse diálogo vai depender da idade da criança (se na primeira infância, adolescência ou juventude)?

Sim, a conversa pode ter um encaminhamento diferente dependendo da idade e/ou maturidade da criança ou do jovem. Em geral, quem dita esse caminho é a própria criança, com suas perguntas e sua forma peculiar de compreensão. As nossas pistas de como conduzir a conversa vem deles mesmos.

Quando somos nós a introduzir o assunto, passamos de forma clara e direta a primeira informação, falando sobre a doença, seus sintomas e como podemos ajudar. Às vezes a criança fica satisfeita com isso e pronto.

Com os adolescentes também. Muitos acham a conversa pesada ou constrangedora, por isso, podemos falar e abrir a possibilidade de voltar ao assunto quando ele quiser, sem força nada num primeiro momento. Ele pode precisar de um tempinho para processar a informação. Isso porque, na adolescência, já começam a ter uma maior compreensão do impacto dessas doenças e podem projetar como isso ficará no futuro. O impacto da notícia pode ser mais profundo e eles podem precisar de mais tempo.

Do mesmo modo, nos colocamos à disposição para responder suas perguntas quando elas chegarem. Em geral, eles acabam voltando no assunto, se sentirem abertura para isso.

Não precisamos fingir que não estamos sofrendo com todas essas doenças, sendo nossas ou de pessoas que amamos. Podemos nos emocionar, mostrar que está doendo na gente também. Seria estranho dar uma notícia dessas e parecer que nada disso nos afeta. Quando mostramos que também estamos impactados, eles se permitem também mostrar o quanto está doendo neles.

O importante é novamente reforçar as formas de enfrentamento dessas situações: como estamos cuidando das pessoas afetadas, o que podemos fazer para aliviar, ajudar, e como tocar a vida, mesmo com tudo isso acontecendo.

Uma coisa muito importante para falar, sobre todas essas doenças: criança, por menorzinha que seja, ou mesmo o adolescente, sente que tem algo ruim acontecendo. Não sabem o que é, mas sentem as mudanças de comportamento e humor das pessoas à sua volta. Em qualquer idade, elas podem começar a fantasiar coisas que podem causar isso. Em geral, acabam atribuindo a “culpa” disso a elas mesmas. Ou, ainda, imaginam coisas muito assustadoras que podem causar mais sofrimento.

Falar a verdade para a criança e ela poder entender que tem coisas ruins que acontecem, que a culpa não é dela, que podemos fazer algo para ajudar e, principalmente, podemos falar sobre o assunto, costuma trazer um enorme alívio, ainda que a verdade também seja dolorida.

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