21.10.2022 Demências

Canabidiol contra o Alzheimer: o que diz a ciência

A carência por opções terapêuticas para frear o Alzheimer, que afeta cerca de 1,2 milhão de brasileiros, gera angústia de médicos, pacientes e familiares. A doença, marcada principalmente pela perda progressiva e irreversível da memória, é um desafio para a ciência. E esse cenário torna propícia a busca por táticas ainda não comprovadas por pesquisas científicas sérias.

Uma delas foi assunto de matérias publicadas em diversos sites jornalísticos sobre a “reversão” de sintomas de um paciente de 78 anos tratado com canabidiol (CBD), um dos derivados da maconha. O estudo, realizado na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), baseou-se em respostas de apenas um voluntário – o avô da pesquisadora Ana Carolina Ruver Martins. 

A repercussão gerou a manifestação de entidades como a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), preocupada com a possível compreensão equivocada do tratamento experimental. “Relatos de caso não permitem avaliar a eficácia e segurança de nenhum tratamento. De acordo com a evidência científica atual, o uso de terapias medicamentosas à base cannabis não é aprovado como um tratamento que modifique a história natural das demências, incluindo a doença de Alzheimer”, diz a nota da SBGG

A Academia Brasileira de Neurologia (ABN) também emitiu uma nota no mesmo sentido. E reforçou que os ensaios clínicos controlados com placebo são mais adequados para tirar conclusões do tipo. 

Derivados da cannabis podem, no futuro, tornar-se um tratamento útil contra o Alzheimer em si, mas ainda estão em testes em fases iniciais com humanos, ou em animais. Em 2014, um grupo de pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) testou o uso de canabidiol em roedores com Alzheimer, com resultados animadores. 

Primeiro, os cientistas administraram uma substância para mimetizar essa demência nas cobaias. Isso gerou uma redução nos níveis da sinaptofisina, proteína indicadora da comunicação entre neurônios. Aí, deram uma versão sintética de CBD aos animais, o que fez a concentração dessa proteína voltar ao normal. “O objetivo do trabalho pré-clínico é chegar num tratamento que possa ser usado em humanos”, afirma a farmacêutica Nadja Schröder, líder do experimento. Testar o CBD em pessoas com a doença está nos planos da pesquisadora, mas não a curto prazo. “Um estudo com humanos é muito mais complexo e caro do que com animais de laboratório”, completa.

Na Universidade de São Paulo (USP), um estudo publicado em 2019 deu um passo adiante e identificou um impacto positivo do CBD na memória, de novo em cobaias. “Nossos resultados mostraram uma melhora em um modelo experimental da doença de Alzheimer em ratos. Mas é cedo para comemorar o uso em humanos”, afirma a pesquisadora Andréa Torrão, coordenadora do estudo no Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.  

Benefício contra efeitos secundários

De acordo com Nadja Schröder, hoje professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), existem pesquisas consolidadas que mostram uma melhora com o uso do CBD das alterações comportamentais causadas pelo Alzheimer, como ansiedade, agitação, agressividade, alteração de sono, falta de apetite e alucinações. 

Esse tipo de aplicação pode ser muito útil para aprimorar a qualidade de vida do paciente e de quem o cerca. Mas é importante ressaltar que a escolha pela terapia deve ser discutida com profissionais de saúde, para verificar todas as alternativas possíveis, e seus benefícios e riscos. 

A Agência Canadense para Drogas e Tecnologias em Saúde fez uma revisão bibliográfica sobre o tema e confirmou que a cannabis medicinal pode ser efetiva para amenizar esses efeitos. Mas, de novo, faltam estudos com humanos que foquem no sintoma central da doença: a perda de memória.

A rede de pesquisadores Cochrane realizou quatro ensaios clínicos curtos num estudo que incluiu 126 participantes com demência. A pesquisa foi inconclusiva sobre os efeitos benéficos ou prejudiciais dos canabinoides nos pacientes, e afirma que eles podem ser “muito pequenos para serem clinicamente significativos”. 

Avanços… e retrocessos

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já aprovou 18 produtos à base da cannabis. Em maio deste ano, foi a vez dos primeiros dois produtos com teor de THC – o tetrahidrocanabinol, substrato da cannabis que dá o “barato” – acima de 0,2% destinados a cuidados paliativos. 

O canabidiol é a fração da maconha utilizada mais largamente em medicamentos. Segundo Nadja, muitos estudos combinam o CBD com outras substâncias, como o THC, o que dificulta a comparação entre o efeito das substâncias de forma isolada.

Na última semana, porém, uma portaria do Conselho Federal de Medicina (CFM) restringiu o uso do CBD no tratamento clínico para apenas dois tipos graves de epilepsia. A decisão recebeu críticas de especialistas, que enxergam um retrocesso. De acordo com eles, há benefícios da molécula no auxílio a sintomas de outras enfermidades – dores, falta de apetite, irritabilidade e por aí vai, como já foi mencionado.

O CFM prevê punir médicos que prescrevam os CBD para outros tipos de patologias. Em entrevista ao UOL, o advogado Gabriel Dutra Pietricovsky, que atua na área de direito à saúde, disse que a resolução da entidade vai “na direção contrária da ciência mais avançada em relação aos produtos derivados da cannabis”. 

Já a CEO e fundadora da Sphera Joy e FlowerMed, Caroline Heinz, comentou ao portal G1 que a norma é incongruente com o que o próprio Ministério da Saúde pratica. “Se não pode, como a Secretaria da Saúde, o Ministério da Saúde e o SUS compram medicamentos com canabidiol para várias patologias, inclusive autismo?” 

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