Covid-19: “fim da emergência” não significa “fim dos cuidados”
Mesmo em fase mais branda da pandemia de Covid-19, quem tem doenças crônicas deve manter precauções para evita o contágio e um possível agravamento da doença causada pelo coronavírus
Valentina Bressan, da Redação AME/CDD
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recentemente deu fim à classificação da covid-19 como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. De cara, vale desfazer a confusão que ocorreu após o anúncio: a pandemia não acabou oficialmente. Na verdade, a entidade argumenta que, mesmo em um contexto pandêmico, a situação deixou de ser grave como nos anos anteriores. Isso graças ao aumento da imunização global e às quedas nas mortes e hospitalizações ao redor do mundo.
Na ocasião, o diretor-geral da OMS Tedros Adhanom afirmou que a notícia significa que “está na hora de os países fazerem a transição do modo de emergência para o de manejo da covid-19 com outras doenças infecciosas”. No Brasil, o fim da emergência havia sido declarado mais de um ano antes, em abril de 2022.
“O fim da emergência global é mais um ato simbólico e administrativo do que propriamente uma mudança no dia a dia”, explica o médico Giordani Passos, pesquisador na área de neuroimunologia clínica e neurologista no Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “Todos nós devemos continuar tomando precauções. O que muda é como os governos e sistemas de saúde vão lidar com essas necessidades provocadas pela covid-19”, completa.
Passos reforça que a reclassificação não significa o fim dos riscos envolvendo a doença. “A pandemia não terminou. Hoje temos melhor capacidade de lidar com ela, mas infelizmente algumas pessoas, como aquelas com doenças crônicas, seguem especialmente vulneráveis ao vírus”, alerta o médico.
Em qualquer cenário, manter a imunização em dia é essencial – mesmo para quem não tem uma vulnerabilidade específica. Para 2023, o plano de vacinação do Ministério da Saúde brasileiro tem o objetivo de atualizar o esquema vacinal dos grupos prioritários com o imunizante bivalente, elaborado para controlar melhor as novas variantes do vírus, além de completar o esquema daqueles que não fazem parte dos grupos mais vulneráveis.
Medidas como o isolamento em caso de infecção também continuam a fazer parte do repertório de prevenção. Assim como ocorre com a vacinação, o controle dos níveis de mortes e internações depende da adoção de atitudes voltadas para o coletivo.
“Mesmo quem não está em um grupo de risco e apresenta sintomas de covid-19 deve se isolar para proteger as pessoas ao redor, que eventualmente têm uma imunidade mais baixa”, pontua o médico.
Ainda que a emergência em saúde tenha chegado ao fim, a pandemia deixou mudanças no sistema de saúde que vieram para ficar. Por exemplo: pessoas com doenças crônicas que precisam de atendimentos em saúde de forma regular foram afetadas desde o início da pandemia. Agora, o sistema de saúde entra em um processo de adaptação para acelerar o fim das filas.
Na prática, a mudança de fase também poderia reduzir os investimentos em iniciativas envolvendo testagem, atendimento médico e até vacinação, o que não é positivo. “Mas o Ministério da Saúde sinalizou que já está tomando medidas para que as políticas públicas não sejam afetadas”, diz o médico.
“Legados” da emergência: telemedicina e filas de atendimentos represados
Cirurgias foram adiadas e atendimentos, desmarcados, para priorizar casos mais graves e para que os demais pacientes não fossem expostos a riscos excessivos. Em 2020, entre março e maio, 70% das cirurgias de câncer foram canceladas, para ter ideia.
De acordo com um estudo publicado em 2021 na revista The Lancet, produzido por pesquisadores brasileiros, argentinos, australianos e norte-americanos, mais de 1 milhão de procedimentos cirúrgicos, emergenciais e eletivos foram adiados ou cancelados entre março e dezembro de 2020.
O mesmo aconteceu com os atendimentos para pessoas com condições crônicas. Houve redução no número de exames marcados e atendimentos ficaram represados. “Ao longo do tempo, o sistema de saúde foi se organizando, e surgiram as ferramentas de telemedicina, que possibilitaram os atendimentos médicos à distância”, destaca o neurologista.
Com a liberação dos Conselhos Federais de Medicina e de Farmácia, os atendimentos à distância se tornaram mais comuns, inclusive em ambulatórios do SUS, e receituários passaram a ser emitidos por ferramentas digitais. “Esse vai ser um impacto duradouro. É uma mudança permanente na forma como médicos se relacionam com pacientes e como conseguem resolver assuntos pertinentes ao tratamento de doenças crônicas”, avalia Passos.
Além de facilitar os atendimentos no período de pandemia, a telemedicina proporcionou maior acesso a especialistas de diferentes localidades sem precisar recorrer a deslocamentos demorados.
Na primeira quinzena de maio de 2023, o Ministério da Saúde liberou recursos para reduzir as filas de cirurgias acumuladas em 19 estados. O Programa de Redução de Filas visa atender o acumulado de exames complementares, acelerando o fluxo de atendimento no SUS.
Covid longa permanece como preocupação futura
A pandemia também deixou como legado uma nova doença crônica: a covid longa. “Já é uma condição crônica relevante nos ambulatórios. Nós atendemos pessoas com sintomas prolongados e inclusive incapacitantes”, conta o neurologista.
De acordo com a OMS, de 10% a 20% das pessoas infectadas pela covid-19 tiveram sintomas residuais. Além de desenvolver pesquisas sobre o tema, especialistas se preocupam com o atendimento desses casos pelo sistema de saúde. “Já vemos algumas iniciativas para lidar com isso, como instituições que criaram ambulatórios para tratamento da covid longa. Mas isso ainda fica muito aquém do que vamos precisar nos próximos meses e anos”, avalia o médico.
Neste momento, já existem mais leitos capazes de atender indivíduos com complicações respiratórias – devido ao aumento necessário durante a pandemia – e os laboratórios se tornaram mais equipados para realização de testes. Mas é necessário avaliar os impactos a longo prazo da doença.
Para os crônicos, um cuidado maior com a imunidade – tanto por parte dos pacientes quanto de seus médicos – é uma herança positiva da pandemia. “Houve um aumento da conscientização sobre a importância da vacinação entre os próprios médicos, que passaram a revisar mais rotineiramente o status vacinal das pessoas. E isso não só relativo à covid, mas contra todos os agentes infecciosos”, explica Passos.
Além de manter a carteira de vacinação em dia, pessoas com condições crônicas podem conversar com seus médicos de referência para discutir medidas de prevenção extra contra o coronavírus e outros agentes infecciosos. “Elas podem incluir a mudança dos medicamentos ou medidas de estilo de vida”, explica.
Para pessoas com diabetes, por exemplo, ter um bom controle da glicemia já representa uma proteção contra os riscos de infecções ao manter a qualidade da saúde. “Ter uma alimentação saudável, fazer exercício físico e evitar o fumo e o excesso de álcool são medidas que vão deixar a pessoa em melhores condições para ter uma resposta imunológica adequada”, diz Passos.
Cada caso exige atenção específica, mas a principal dica do especialista é se preocupar com a saúde de forma geral, não apenas com a vacina. “Para quem tem fatores de risco, é preciso discutir com o médico quais as melhores formas de prevenção”, conclui.