“Demorei 30 anos para descobrir a DOT”: conheça Gail Devers, a tricampeã olímpica com uma doença crônica rara

Em 1992, a velocista estadunidense Gail Devers era a sensação das Olimpíadas de Barcelona. Ela levou o ouro na corrida dos 100 metros rasos por uma cabeça de diferença, em uma das finais mais apertadas da história, decidida por um centésimo de segundo. Porém, ainda queria mais: o ouro nos 100 metros com barreiras, prova na qual ela era especialista. Nas eliminatórias, venceu as rivais com ampla vantagem, e a torcida estava com ela. Até que o inesperado aconteceu.

Quando escutou o som do disparo ao alto, Gail largou como um foguete na segunda raia. Aos 10 segundos, ela tinha superado nove barreiras e estava com folga na frente das adversárias. Era a chance de estabelecer um novo recorde na modalidade. De repente, um tropeço no último obstáculo desestabilizou seu pé de apoio. A corredora caiu cambaleante nos metros finais até cruzar a linha de chegada com o rosto praticamente no chão. “Eu não via os obstáculos, eles pareciam embaçados. Mas a corrida já tinha começado e não havia opção. Eu precisava superá-los”, conta Gail, em entrevista para a Redação AME/CDD

A imagem da queda ficou registrada como um dos momentos mais tristes daqueles Jogos Olímpicos. Ela não sabia na época, mas o tombo e a visão turva tinham uma explicação: a doença ocular da tireoide (DOT), uma condição autoimune e inflamatória que ataca os olhos e tecidos próximos. É uma doença rara, da qual Gail só tomou conhecimento no ano passado. Agora, ela usa seu nome para dar visibilidade ao tema e alertar pessoas que passam pelo mesmo problema. 

“Demorei 30 anos para descobrir. Não quero que isso aconteça com outras pessoas. Quero que sejam velocistas e cruzem a linha de chegada, que pendurem a medalha de ouro no pescoço e tenham uma equipe cuidando de sua saúde”, ressalta a atleta.

Mesmo com os problemas de saúde, Gail Devers faturou três medalhas de ouro em Olimpíadas e venceu cinco campeonatos mundiais de atletismo – três deles nos 100 metros com barreiras.

Uma luta de 30 anos – Doença de Graves

A primeira vez que Gail soube que sua saúde não estava bem foi em 1988. Durante a preparação para sua primeira Olimpíada, em Seul, a atleta começou a perder muito peso – na pior fase, mais de 35 quilos – e sentia desconforto nos olhos. “Eles ficavam inchados, vermelhos, lacrimejando às vezes. Eles não fechavam completamente quando eu dormia”, recorda-se. “Isso continuou durante dois anos e meio, com consultas em diferentes médicos. Muitos me diziam que não havia absolutamente nada de errado comigo”, conta. Daquela vez, ela se classificou para a semifinal dos 100 metros com barreiras, mas não passou nas fases seguintes.

Gail se olhava no espelho e não se reconhecia. Tinha parte da cabeça sem cabelo. Estava tão fraca e com o semblante abatido que ela mesma se apelidou de “mulher jacaré”. Ela sabia que uma queda de rendimento tão abrupta não era normal.

O primeiro diagnóstico veio só em 1990: Gail tinha doença de Graves, uma condição autoimune e a principal causa de hipertireoidismo (a produção excessiva de hormônios da tireoide). Entre os sintomas mais comuns, estão a taquicardia, palpitações, perda de peso, intolerância ao calor, tremores e ansiedade. Cerca de 0,5% da população global sofre desse problema, cuja causa é incerta. 

Desde então, ela toma remédios para controlar a disfunção na tireoide. O tratamento a ajudou a continuar com uma carreira vitoriosa. Ali ela soube que não era uma atleta ruim – e sim alguém que precisava de ajuda médica.

Gail foi campeã mais duas vezes em 1996, em Atlanta (onde mora hoje), e continuou subindo ao pódio de campeonatos mundiais até o início dos anos 2000. Porém, o incômodo nos olhos continuava.

Ela conta que, em determinado momento, precisou parar de dirigir, porque sua visão falhava de forma inesperada. “Meus filhos eram bebês na época e pensei ‘ok, isso é perigoso’. Eu não conseguia enxergar nada à noite”, lembra. Agora, ela espera que sua filha mais velha – já com 16 anos – tire a carteira de motorista para se virar sozinha.

A segunda descoberta – DOT

De acordo com um estudo de revisão publicado em 2020 por pesquisadores de Singapura, até 50% dos pacientes com Graves podem desenvolver a DOT, conhecida também como oftalmopatia de Graves. 

A prevalência da DOT é maior em pacientes com hipertireoidismo. Em menor número, indivíduos com hipotiroidismo ou até com funcionamento normal da tireoide também desenvolver a doença, que causa vermelhidão nos olhos, ressecamento, lacrimejamento excessivo, inchaço, dores ao mover os olhos, aspecto protuberante nos olhos, retração ou inchaço da pálpebra, sensibilidade à luz e problemas como visão dobrada ou perda da visão em cores. 

Em casos mais graves, pode ocorrer a compressão dos nervos e danos à córnea que, no extremo, levam à cegueira. A Food and Drug Administration (FDA), agência regulatória norte-americana, aprovou, em 2020, a primeira medicação para tratar especificamente esse problema. 

Quando Gail descobriu que, além da doença de Graves, tinha DOT, encontrou as respostas que procurava. Escreveu uma carta intitulada “Querido DOT” e gravou um vídeo para desabafar tudo o que tinha passado por mais de três décadas. “Você se lembra desse dia no parque quando um menino apontou para mim e disse ‘mãe, o que há de errado com ela? Parece um monstro’. Foi aí que parei de sair de casa”, diz para a câmera, como se estivesse falando com a doença. Assista ao vídeo (em inglês):

https://youtube.com/watch?v=VjaoaB1wkLY%3Ffeature%3Doembed

Agora, Gail Devers encoraja outras pessoas com essa patologia a se exporem, por meio de um site chamado “Dear TED Letter” (“Letra para o querido DOT”, em tradução livre). Lá, elas encontram contatos de especialistas, recebem materiais informativos e compartilham suas experiências. “Você precisa de respostas, senão enlouquece. Você fica num limbo e esse não é um lugar onde alguém queira estar”, reforça a atleta. 

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