29.08.2022 Outras Patologias

Etarismo: o preconceito contra idosos e o impacto na saúde

À medida que aumenta a população idosa, cresce também o etarismo contra essa faixa etária, vista pela OMS como um dos maiores entraves ao envelhecimento saudável

Uma pessoa é hospitalizada com uma doença grave e potencialmente fatal. Os tratamentos são caros, e os profissionais precisam decidir se vale a pena salvá-la frente aos altos custos de equipamentos, remédios e por aí vai. O que determinará essa escolha? Segundo um estudo multicêntrico, a resposta é: a idade, por mais discriminatório que isso seja. 

Sim, os anos de vida são um fator determinante na oferta de certos procedimentos médicos caros, mas que salvam vidas, como ventilação mecânica. Foi o que revelou um estudo clássico divulgado no final da década de 90 realizado em cinco centros médicos nos Estados Unidos após analisar prontuários de mais de 9 mil pacientes com doenças com alta taxa de mortalidade. 

Para o suporte ventilatório, quando o paciente precisa de um equipamento para funcionar como seu pulmão auxiliar, o índice de decisões para suspender a terapia aumentava 15% a cada década de vida. Na cirurgia, o salto foi de 19% por década. Na diálise, 12%. 

A pesquisa ilustra um dos impactos na saúde do chamado etarismo, ou idadismo. O termo teve origem na palavra inglesa ageism, cunhada por Robert Butler, psiquiatra e pioneiro em chamar atenção para a falta de atenção social e médica dada a quem ultrapassa os 60 anos. 

Os exemplos são tantos que a Organização Mundial de Saúde (OMS) reuniu esse estudo descrito acima e outros tantos para lançar o plano para “Década do Envelhecimento Saudável” (2021-2030). 

O fato é que nunca foi tão necessário chamar atenção para essa etapa da vida, que só há pouco começou a ser melhor vivida e compreendida. Houve uma revolução nos últimos 70 anos, com o crescimento do contingente dessa faixa etária. De 1950 para 2021, o número de brasileiros com mais de 60 anos passou de 2,2 milhões para 31,2 milhões. 

“Nós aumentamos nossa expectativa de vida em torno de meio ano a cada ano desde a década de 50. Alcançamos os 76 anos, aí houve uma redução de 4,4 anos com a pandemia e voltamos à expectativa de 2010. Mas, com a pandemia sob controle, devemos retomar ao patamar anterior”, diz Yeda Duarte, professora da Escola de Enfermagem e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. “As pessoas idosas de hoje se comportam diferente do que há 20, 30 anos”, completa. 

Os serviços de saúde, por exemplo, não acompanharam o aumento de 1 316% de idosos na população em geral em sete décadas. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), há um médico geriatra para cada 24 mil idosos no país – a recomendação da OMS é de um a cada mil. Essa carência é amplificada pela falta de formação em gerontologia nas universidades.

Segunda Yeda Duarte, outro exemplo de etarismo explícito aconteceu durante a pandemia de Covid-19, com as falas reiteradas de autoridades de que os mais velhos podiam ser preteridos em relação aos mais jovens ou que suas vidas importavam menos. “Como não tinha leito para todo mundo, se tivesse que escolher entre um jovem e um velho, escolheriam o jovem”, lembrou a pesquisadora. 

Cientistas da Universidade Yale, nos Estados Unidos, analisaram estudos sobre a relação entre etarismo e saúde. Divulgada em 2015, esse compilado concluiu que em 84,6% das pesquisas havia uma relação entre a fase da vida e a autorização para realizar determinados tratamentos médicos – quanto mais velhos, maior a dificuldade.

O etarismo não apenas determina como alguém será tratado em um serviço de saúde, mas também influencia outros aspectos que prejudicam a qualidade de vida. Apesar de serem os principais usuários de medicamentos e tratamentos, idosos costumam ser excluídos de estudos clínicos, o que prejudica o entendimento de doenças que afetam mais essa faixa etária. 

Foi o que mostrou uma revisão sobre pesquisas com Parkinson, que atinge principalmente a população idosa. Metade dos estudos examinados excluiu pacientes com mais de 79,3 anos.

Parte do estigma do etarismo é a associação da idade avançada com doença. Calcada culturalmente, essa ideia chegou inclusive a ser expressa na versão atual da CID, a 11ª Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, que havia incluído, antes de ser lançada, “velhice” como uma patologia. 

A alteração, pouco divulgada, pegou de surpresa a sociedade e só foi revertida após uma intensa luta de cientistas e movimentos de idosos, com protagonismo do Brasil. 

“A pessoa idosa não é doente. O termo ‘velhice’ diz respeito a uma fase da vida, assim como a criança, o adolescente, o jovem adulto, o adulto. Em cada fase, você tem características peculiares. Um recém-nascido precisa de cuidados 24 horas. Por causa disso ele seria doente?”, questiona Yeda Duarte. “Não posso dar a uma faixa etária a ideia de doença. É um erro grave que reforça preconceito”, arremata. 

Após as manifestações, que contaram até com ajuda do Papa Francisco, a CID de “velhice” se transformou em “declínio da capacidade intrínseca associado ao envelhecimento”.

Para fazer frente ao etarismo, a OMS propõe primeiro trabalhar para desfazer a associação entre velhice e doença. Os dados comprovam o equívoco: no Brasil, 75% da população brasileira idosa é autônoma. “Isso não quer dizer que muitas pessoas mais velhas não tenham condições crônicas, e sim que, independente disso, elas vivem de forma autônoma, se cuidam, cuidam do seu entorno e muitas vezes sustentam a família”, observa Yeda.

No plano da OMS, o segundo eixo envolve construir serviços sociais e de saúde que incluam as pessoas idosas, respeitando suas diferenças. Em alguns países, já foram aprovadas leis e políticas específicas para ajudar no combate ao etarismo.

É o caso do Protocolo dos Direitos das Pessoas Idosas na África, que garante cobertura de acesso à saúde, direito ao emprego e proteção social. Em 2017, países da América Latina também ratificaram uma convenção sobre proteção dos direitos humanos dos idosos. 

No Brasil, desde 1994 existe a Política Nacional do Idoso, que proíbe a discriminação e determina o acesso à assistência de saúde, além de defender a criação de programas educacionais sobre o envelhecimento no ensino formal. Embora contabilize avanços, há um longo caminho a se percorrer, como explica a gerontóloga Yeda Duarte: “O que se defende é que todas as faculdades ligadas à área social e de saúde tenham conteúdos de geriatria em seu currículo básico, assim como possuem de pediatria e obstetrícia. Conseguimos avançar nesse sentido, mas não existe uma uniformização”. 

Além do ensino para os profissionais da saúde, a OMS defende um combate amplo ao etarismo por meio das intervenções para todas as idades. Como qualquer outro preconceito, a discriminação contra os mais velhos se perpetua porque é incentivada desde cedo.

“Não podemos tratar os idosos como crianças. Eles têm suas próprias características, e todos merecem respeito e inclusão”, resume Yeda.

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