Recovery resgata cidadania e coloca pessoas com esquizofrenia como ‘estudantes do próprio tratamento’
Conheça mais sobre o Recovery, técnica que pretende quebrar estigmas sobre a esquizofrenia
Movimentos sociais e de direitos humanos, na década de 1970, inspiraram o conceito de recovery para pessoas que têm esquizofrenia. Na época, grupos que defendiam a saúde mental questionavam a maneira autocrática e medicalizante como esses pacientes eram tratados, com internação e tudo o mais.
A esquizofrenia é um transtorno mental caracterizado por pensamentos ou experiências que parecem não ter contato com a realidade. A pessoa apresenta comportamentos específicos como agitação, agressão, compulsão, isolamento social e outros. Na parte cognitiva, são comuns a confusão mental, amnésia, delírio e desorganização. Também são frequentes sintomas atrelados à ansiedade, apatia, despersonalização ou perda de interesse em atividades. Organicamente, a pessoa pode apresentar distúrbio de fala, coordenação motora comprometida e fadiga.
O objetivo do recovery é fazer com que a pessoa tenha recuperada sua cidadania, apesar de o quadro clínico, socialmente falando, ainda enfrentar muito preconceito. A técnica também coloca o até então paciente como o protagonista do próprio tratamento, ocupando muito mais um lugar de estudante da sua vida. “As pessoas se tornam ativas no tratamento, ou seja, ‘nada sobre nós sem nós’, quebrando estigmas e paradigmas. Esse é o sentido do recovery”, afirmou José Alberto Orsi, diretor-presidente da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Pessoas com Esquizofrenia (ABRE), durante participação no programa Saúde na Roda.
Além de ter esquizofrenia, Orsi é engenheiro civil e doutorando em Saúde Mental no Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp) e cofundador da Rede Recovery Brasil. Para aprofundar nosso conhecimento sobre a técnica, confira a entrevista que fizemos com ele:
O que é o Recovery e como surgiu?
Recovery significa uma melhor forma de compreender esse processo a partir das narrativas das pessoas com experiência de doença mental e das suas experiências vividas pessoalmente. Uma definição clássica pode ser a de Anthony, 1993: “um processo único e profundamente pessoal de alteração das próprias atitudes, valores, sentimentos, objetivos, competências e/ou papéis. É uma forma de viver uma vida satisfatória, com esperança e útil, mesmo dentro dos limites causados pela doença”.
O movimento do Recovery surgiu nos anos 1970 e 1980, nos EUA, a partir de movimentos de usuários de saúde mental com autoajuda, empoderamento e defesa de direitos, alicerçados pelas lutas pelos direitos civis nas décadas anteriores. Existiam grupos de ajuda mútua, “em recuperação”, inspirados por estudos de seguimento em que se desafiava a concepção dos transtornos mentais graves, especialmente a esquizofrenia, como um processo de deterioração progressiva. Esses grupos postulavam que era possível uma recuperação clínica, social e funcional, ou seja, uma reabilitação psicossocial com a recuperação na doença, ou apesar dela. Dessa forma, o processo do Recovery é visto como jornada, ou processo contínuo, e não como um ponto de chegada.
Como você conheceu o Recovery? Poderia nos contar um pouco sobre sua história pessoal nesse contexto?
Basicamente eu conheci o Recovery através da ABRE (Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Pessoas com Esquizofrenia) em 2003, quando eu ingressei nessa ONG, mesmo que essa prática não fosse nominada como tal. A missão da ABRE é a de melhorar a qualidade de vida das pessoas com esquizofrenia e seus familiares, através de apoio, informação e psicoeducação, lutando por seus direitos e combatendo o estigma. A ABRE foi concebida através de um projeto introduzido em mais de 20 países (“Open the Doors”), a partir de um programa anti-estigma da World Psychiatric Association (WPA), lançado em 1999.
Mais especificamente, foi em 2015, com o meu ingresso e participação no projeto da Comunidade de Fala (CdF-SP), concebido pelo jornalista, educador e usuário estadunidense Richard Weingarten, que esse processo foi mais bem vivenciado por mim. A CdF visa capacitar pessoas com diagnóstico de transtorno mentais graves, e com histórias de vivência e superação dos seus participantes, que promovem palestras psicoeducativas para públicos variados. A abordagem é apoiada no modelo Recovery, através da superação, empoderamento e protagonismo dos seus participantes. As apresentações da CdF são baseadas no diálogo, informando, conscientizando e reduzindo o estigma. Fui o primeiro coordenador da CdF-SP, junto com Caio Wilmers Manço, dando a primeira palestra pública em São Paulo, com Vera Gomes, para um grupo de residentes médicos da Escola Paulista de Medicina da Unifesp.
Poderia nos explicar no que consistem as etapas de recuperação e importância de cada uma delas?
A primeira etapa do processo de Recovery é a recuperação clínica, pela desinstitucionalização, sob o prisma de que a melhora clínica é possível, com a eliminação dos sintomas através de incremento do funcionamento social e outras formas de “voltar ao normal”. Isso envolve: (1) remissão total dos sintomas positivos do transtorno mental; (2) trabalho ou educação em período integral ou parcial; (3) vida independente sem supervisão por cuidadores; (4) uma rede de amigos para se compartilhar experiências; e (5) sustentado por um período de 2 (dois) anos.
Qual é o papel da rede de apoio nesse contexto para os pacientes que têm esquizofrenia (amigos, familiares etc.)?
A palavra de ordem e ponto fundamental no processo de Recovery é o suporte de pares, exemplificado pela recuperação pessoal do paradigma CHIME (Leamy et al., 2011) que inclui: (1) conexão com os outros (connection); (2) esperança e otimismo (hope); (3) identidade (identity); (4) significado e propósito (meaning); e empoderamento (empowerment). Isso envolve um processo de cidadania, ou seja, uma identidade, além da doença, papéis valorizados e reconhecidos com inclusão social e participação significativa na sociedade.
Um modelo que poderia ser citado, anglo-saxônico, é o dos cinco “Rs”, disponibilizados por instituições, serviços e participação em associações no campo da saúde mental, que podem potencializar o processo de Recovery: rights (direitos), responsabilities (responsabilidades), roles (papeis), resources (recursos) e relationships (relacionamentos).
Dessa forma, o papel da rede de apoio pode se dar de forma informal ou através de grupos orientados a familiares e usuários, oportunidade em que se trocam experiências vividas por meio de conversas quando, através do diálogo entre os participantes, se promove informação e empoderamento, criando uma rede de pertencimento em que se fortalece a cidadania. Dessa forma, os players (participantes), tais como amigos, familiares e profissionais de saúde mental, alicerçam o processo de Recovery, especialmente no acolhimento, promovendo empoderamento, pertencimento e protagonismo.
Com a experiência que tem como especialista, quais transformações já presenciou com os pacientes? Como o Recovery transforma suas vidas?
É notável como as ações baseadas no suporte de pares são potentes. Isso ressignifica a vida dos pacientes, ou melhor, das pessoas com experiência vivida com transtornos mentais. Como já mencionado, isso envolve ações de empoderamento, pertencimento e protagonismo, promovendo e reforçando ações de cidadania. As pessoas em processo de recovery encontram e interagem com seus iguais, sua “tribo”, não se sentindo mais sozinhas ou desmotivadas. Com isso, é formada uma rede de apoio baseada no diálogo e troca de experiências, com a formação de laços de amizade e afeto, promovendo a reinserção social, em que elas podem voltar a sonhar e ter planos para uma vida mais saudável e significativa.
Tenho verificado e testemunhado, nos últimos anos, como esse processo é potente e sinergético, apoiada por entidades como a ABRE, bem como outras ONGs e instituições filantrópicas do terceiro setor, que atuam de forma parceira. Uma vez iniciado o processo do Recovery por uma pessoa, ou um grupo delas, através de uma vontade genuína e inquebrantável de mudar, superando o transtorno mental e readquirindo qualidade de vida, isso é irreversível. Trilha-se e promove-se um caminho de “bem-aventurança”, baseado na realização pessoal e felicidade, com o retorno da alegria de viver.
Para quem recebeu o diagnóstico agora, qual mensagem poderia dar?
Nunca desista dos seus sonhos! Nunca deixe de lutar para se recuperar e readquirir qualidade de vida. Uma pessoa com transtorno mental, ou mesmo em surto, nunca está sozinha. Sempre existe uma rede de apoio, através de familiares, amigos e profissionais de saúde mental, que promoverão ações de acolhimento e superação, apoiadas por boas práticas médicas, psiquiátricas e psicoterapêuticas.
Como dizia o eminente espírita Chico Xavier: “não é possível escrever um novo começo, mas sempre existe a possibilidade de se escrever um novo fim…” Dessa forma, o paradigma do Recovery e o processo de superação da doença mental é uma realidade factível e acessível a todos, sem distinção. Basta querer mudar, “arregaçar as mangas”, caindo e se levantando, mesmo que isso envolva sangue, suor e lágrimas. Pode não ser possível “matar um leão por dia”, mas é sempre efetivamente possível amansá-lo e conviver, de forma sadia e proativa, com o transtorno mental, evidentemente dentro de um contexto de esperança realista, com uma meta de superação e recovery plenamente alcançável.