Sem investimento, acesso à saúde mental pelo SUS passa por longas filas
A redatora Priscila Raabe, 28 anos, buscou atendimento psicológico pelo SUS no início de setembro de 2020, quando notou um agravamento na depressão – até ali não diagnosticada. Ela foi até uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em Águas de Lindoia, cidade do interior de São Paulo onde mora. “Passei com um clínico de plantão, que me encaminhou para psicólogo e psiquiatra e, em menos de cinco minutos de consulta, me receitou um remédio tarja preta”, relata Priscila. Mais de dois anos se passaram e ela ainda não teve consulta com os especialistas pelo SUS. “Na época, me falaram que havia cerca de 200 pessoas na fila”, lembra.
O acesso aos serviços de saúde mental oferecidos pelo SUS se dá justamente através da atenção primária, nas UBS, onde os médicos de saúde da família recebem apoio de especialistas para acompanhar o paciente, dependendo do caso. Mas a falta de investimentos nos últimos anos criou barreiras para quem precisa de atendimento, como explica o psiquiatra Deivisson Vianna, coordenador do grupo temático de saúde mental da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
No início de 2020, o governo Bolsonaro extinguiu o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), composto por vários profissionais (incluindo psicólogos e psiquiatras) que integravam as equipes da atenção primária para que problemas de saúde mental fossem atendidos já nas UBS. Os gestores municipais passaram a ser responsáveis por definir quais especialistas entram nas equipes multidisciplinares de apoio à atenção básica, sem seguir um parâmetro nacional.
“O NASF possibilitava, quando necessário, prescrever medicamentos no próprio posto de saúde. Especialistas iam até os ambulatórios para tirar dúvidas. Acabando com esse apoio, aumenta o número de casos que poderiam ter sido tratados na atenção primária, mas agora são encaminhados para especialistas, lotando as filas”, lamenta Vianna.
Cerca de 11% dos brasileiros já receberam o diagnóstico de depressão alguma vez na vida. “Essa é uma prevalência alta, que precisa ser tratada e acompanhada também pela atenção primária. Nem mesmo um grande número de ambulatórios especializados daria conta”, afirma o médico.
O desmonte do NASF é recente, mas a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), como é chamada a política nacional de saúde mental que integra vários serviços, enfrenta problemas há mais tempo. Instituída em 2011, a RAPS não teve o financiamento reajustado desde então. “Sustentar essa rede tornou-se quase inviável. Só os municípios maiores e mais ricos conseguem ter uma rede mais diversificada, até com consultórios na rua”, afirma Vianna.
A RAPS é composta por:
- Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), onde são acompanhados os casos mais graves do ponto de vista psiquiátrico
- Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), onde residem pessoas com transtornos mentais graves
- Centros de Convivência e Cultura, que promovem formas de reinserção social a partir do trabalho
- Unidades de Acolhimento (UA), onde podem ficar pessoas com dependência química que se afastaram do círculo familiar
- Leitos de atenção integral, que podem estar situados em Hospitais Gerais ou nos chamados CAPS II.
Esses serviços, porém, não são bem distribuídos pelo país. “Infelizmente, grande parte das cidades não têm a maioria desses equipamentos. Na década de 1990, havia cerca de 100 CAPS no Brasil inteiro. Em 2015, esse número chegou a 3 mil, mas a partir daí não houve expansão nenhuma da rede”, explica o psiquiatra. “Todo o ganho de 20 anos dessa política de estado, que era frequentemente citada pela OMS como exemplo de política pública em saúde mental, foi descontinuado”, lamenta.
Priscila deu entrada no pronto-socorro em 24 de setembro de 2020, após uma tentativa de suicídio. “Não tive nenhum tipo de acolhimento e tampouco suporte para tratamento psicológico. Desde então, nunca me contataram”, relata. “Consegui arcar com o custo do tratamento particular com a ajuda da família e retomei o controle da minha vida. Mas sei que, se dependesse do SUS, a história talvez fosse diferente”, revela
Fatores de risco exigem cuidado multidisciplinar
Pesquisas indicam que pessoas com doenças crônicas têm maior risco de suicídio. “Quando o comportamento suicida envolve vários fatores, não dá para simplesmente prescrever medicamentos. Às vezes, é preciso fazer um controle mais adequado da doença crônica”, explica Vianna. Em outras situações, a família não aceita a enfermidade, o que abala a saúde mental do paciente. Há ainda casos em que a doença dificulta a sustentabilidade financeira, um fator importantíssimo para o bem-estar. “Aí a rede de assistência social precisa ser acionada”, complementa o especialista.
Para o psiquiatra, essas situações reforçam a necessidade de articular o cuidado a partir da atenção básica, pensando não apenas na pessoa acometida pela depressão mas em toda a rede de convívio que a cerca. “Saúde é investimento social. O primeiro passo é recompor o orçamento do Ministério da Saúde”, argumenta.
Serviço online é opção em locais com estrutura
O acompanhamento psicológico através de consultas pela internet pode ser uma alternativa. “Os municípios com maior capacidade organizativa já montaram serviços de atendimento online no campo da saúde mental”, afirma Vianna. Em Curitiba (PR), por exemplo, a maior parte dos atendimentos do ambulatório de psicologia é virtual. “Só que os municípios fizeram isso por conta própria, não houve nenhuma política federal de fomento a esse tipo de ação”, destaca o médico.
O Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio de forma gratuita. É possível acessar o chat ou, então, discar 188.