Consumo de alimentos ultraporcessados “envelhece” o cérebro, aponta pesquisa da USP

Biscoitos recheados, macarrão instantâneo e embutidos representam 30% das calorias que adolescentes e adultos brasileiros ingerem diariamente, em média. Esses alimentos, que integram o grupo dos chamados ultraprocessados, aumentam o risco de desenvolver hipertensão, doenças cardiovasculares, obesidade, síndrome metabólica, entre outras doenças.

Um estudo brasileiro, publicado na edição de dezembro do Journal of the American Medical Association, o Jama, traz um novo alerta, dessa vez para a saúde cerebral. Os pesquisadores encontraram uma associação entre o consumo de ultraprocessados e a aceleração do declínio cognitivo. 

Em condições normais, esse déficit é esperado com o avançar da idade. Conforme envelhecemos, a rapidez para realizar certas atividades que exigem mais concentração tende a diminuir, e podemos ter problemas para fazer planejamentos e lembrar de tarefas e compromissos. 

Uma dieta rica em ultraprocessados, porém, faz com que esse processo natural acabe ocorrendo muito antes.  “Observamos que pessoas que comiam mais de 20% de ultraprocessados diariamente tinham um declínio acelerado. É como se a pessoa tivesse a cognição de alguém 10 ou 20 anos mais velho”, explica a bióloga Natália Gomes Gonçalves, pesquisadora do Laboratório de Patologia Cardiovascular do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. 

Para chegar aos resultados, estudiosos de quatro universidades brasileiras e da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, avaliaram dados sobre a saúde de mais de 11 mil pessoas, com idades entre 35 e 74 anos, de seis cidades brasileiras ao longo de oito anos. Informações de alimentação e de capacidade cognitiva foram coletadas em três etapas e fazem parte do Estudo Longitudinal Brasileiro de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil), um levantamento epidemiológico que investiga diversas doenças crônicas. 

Durante a pesquisa, os participantes responderam a questionários sobre hábitos alimentares e realizaram testes que avaliaram a memória, a fluência verbal e a função executiva (a habilidade de planejar diferentes tipos de tarefas, conscientes ou não, desde a organização de uma viagem até um simples movimento do corpo). 

Ao comparar o grupo que ingeria mais de 20% da dieta diária em ultraprocessados com quem não alcançava essa marca, identificou-se que o declínio cognitivo global foi 28% mais rápido para o primeiro. O estudo sugere que o consumo desses alimentos representa um risco para a mente por si só, mesmo quando não são desenvolvidas outras patologias típicas associadas a essa dieta, como o diabetes, a hipertensão e a obesidade. “Fizemos um ajuste estatístico para que esses fatores não interferissem no resultado final”, afirma a pesquisadora. “Então podemos afirmar que, independentemente de ter essas doenças, os ultraprocessados estão associados ao declínio cognitivo”, completa.

Cuidados desde cedo

O risco do consumo em excesso dos ultraprocessados, segundo o artigo, é ainda maior para as pessoas mais jovens, com um declínio mais acentuado entre quem tinha 35 e 59 anos. “O que acontece é que temos uma janela de prevenção do cérebro. Desde a infância, temos uma reserva cognitiva, expandida conforme aprendemos coisas e desenvolvemos a cognição. Essa reserva atinge um pico por volta dos 30 a 35 anos, e a partir daí temos o declínio cognitivo natural”, explica Gonçalves. “É por isso que, a partir dos 35 anos, precisamos prevenir para não ter doenças neurodegenerativas ou um declínio cognitivo acelerado”. 

Acima dos 60, a associação não foi tão significativa porque já se passou da fase da prevenção – ou seja, boa parte do declínio natural do envelhecimento já está em curso, o que fez com que o efeito isolado dos ultraprocessados fosse menos significativo. 

Atenção: isso não significa que quem já ultrapassou a janela de prevenção não possa se beneficiar de mudanças no estilo de vida. “A cognição não vai voltar a ser a mesma de antes, se pararmos de ingerir ultraprocessados agora, mas podemos desacelerar esse declínio”, pontua a bióloga. 

O mecanismo que explica a relação entre os ultraprocessados e o declínio cognitivo ainda não foi completamente esclarecido pela ciência. Como os participantes da base de dados do Elsa-Brasil não realizaram exames de neuroimagem, os pesquisadores não conseguiram identificar possíveis razões para o envelhecimento cerebral se acelerar. 

Mas já existem hipóteses. “A função cognitiva é sensível a lesões vasculares. Pequenos derrames, às vezes imperceptíveis, podem afetar essa função”, explica Gonçalves. Ocorre que uma má alimentação favorece esses microderrames por comprometer a saúde vascular.

“Outro ponto já claro na literatura é que os ultraprocessados aumentam a inflamação no corpo. E essa inflamação poderia afetar o cérebro, mas ainda não é possível ter certeza”, diz Gonçalves. 

Estudos prévios, com avaliação de neuroimagem, já demonstraram que a dieta “ocidental” – rica em gordura saturada e carboidratos com pouco valor nutricional – está relacionada a uma redução do hipocampo esquerdo, área do cérebro que atua em funções de aprendizado, memória e regulação do humor em indivíduos saudáveis. 

Os pesquisadores brasileiros vão seguir com os estudos para investigar a associação de outras enfermidades com os ultraprocessados. “Durante a escrita do artigo, notamos uma alta prevalência de depressão, então estamos estudando isso agora”, conta a bióloga e doutora em patologia. 

Alimentação que beneficia o cérebro?

Na contramão dos ultraprocessados, dietas saudáveis já foram relacionadas com aumento do volume cerebral e a níveis baixos de inflamação. No estudo brasileiro, o padrão de alimentação considerado saudável foi baseado na chamada dieta MIND, que combina ingredientes da alimentação tipicamente mediterrânea com outra desenvolvida para conter a hipertensão. As recomendações são clássicas: consumir mais vegetais de folhas verde-escuras, frutas vermelhas, nozes, grãos integrais, peixe e leguminosas. 

Os impactos dessa dieta na saúde do cérebro são amplamente pesquisados e, para incluí-la nas considerações da pesquisa brasileira, algumas adaptações foram necessárias. “Como essa dieta foi desenvolvida no hemisfério norte, alguns alimentos incluídos são caros aqui no Brasil. Adaptamos para nossa cultura local, trocando, por exemplo, as amêndoas, que são caras, por amendoim e castanha de caju. Também incluímos mais tipos de frutas vermelhas”, explica Gonçalves. 

Embora não se possa estabelecer um nível de consumo seguro para consumir ultraprocessados, uma dieta com alimentos saudáveis em abundância protegeu, de certa forma, as pessoas do declínio cognitivo acelerado. “O problema não é tanto o hambúrguer que você come, mas a alface que você não está comendo. Adicionar vegetais e alimentos saudáveis pode compensar o risco de ultraprocessados”, indica a pesquisadora. 

Na dúvida, vale seguir as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira: usar o máximo de alimentos minimamente processados, buscar preparar as refeições em casa sempre que possível e comprar frutas e vegetais produzidos localmente. “A principal dica é descascar mais”, brinca a bióloga. 

Para proteger a saúde cerebral, também é importante exercitar o corpo e a mente: aprender novas habilidades, como um novo idioma e fazer exercícios aeróbicos. Nesse âmbito, tudo que desafia o cérebro e o corpo é relevante para manter o cérebro ativo, até jogos como palavras cruzadas ou sudoku

“Aquirir hábitos saudáveis é um processo longo, mas que pode ser feito aos poucos. As pessoas podem ter paciência e mudar devagar. Não é preciso fazer tudo de uma vez, e é possível se beneficiar desses hábitos em qualquer idade”, completa a pesquisadora.

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